sábado, 18 de agosto de 2007

Descanso.



Os antigos sempre carregaram suas superstições consigo como se fossem uma riqueza que devessem guardar. Sempre respeitaram e seguiram suas próprias crenças. Tem uma que é bem interessante, da qual muitas vovós viam-se no dever de falar aos seus netos. Dia 24 de agosto, dia de São Bartolomeu, o dia mais aziago do ano, o dia em que o Demo sai do inferno e vem aprontar das suas pela terra. É um dia em que a maldade é mais maldade. Todos temem esse dia. Principalmente aqueles que vivem em cidades pequenas, onde as superstições têm mais valor que a ciência. Todos os anos são narradas catástrofes acontecidas nesse dia. Teve uma vez, porém que não aconteceu nada disso.
O Diabo estava cansado do calor do inferno com suas chamas eternas. A fumaça não dava trégua. O cheiro da carne apodrecendo e cozinhando. Os gritos de um sofrimento que nunca passaria. Eram os pecadores sendo redimidos de seus feitos considerados não ortodoxos. Uma eternidade toda assim. Até o Diabo se cansou e se decidiu que naquele dia não sairia fazendo nada. Queria sentar-se e ficar sentado. E se preparou para isso.
Passou a madrugada toda escolhendo uma aparência que lhe agradasse e que não causasse espanto demais ou admiração demais. Tornou-se um jovem de 18 anos, bonito, com seus olhos e cabelos pretos e ainda escolheu um belo sorriso. A manhã se foi embora enquanto se vestia como mortal. Calça jeans, camiseta, boné e um par de tênis confortáveis. Ficou se admirando no espelho e até achando graça do que os velhos sempre disseram. O Diabo pode estar sob qualquer forma. Era verdade. Se achava bonito daquela maneira.
Escolheu para passar o dia uma cidade pequenininha, dessas de interior, com praça e igreja, nas quais todos os moradores passeiam aos domingos. Não era domingo mas ele queria a praça mesmo assim. Os moradores não estariam na lá. Além de não ser domingo, aquele era um dia em que as crendices seguravam as pessoas em casa. As mães não deixavam seus filhos irem pra fora de casa. Todos se trancavam. Só saíam aqueles que precisavam, que tinham seus trabalhos e obrigações fora de casa. Uma vez um padre prefeito quis colocar o dia como feriado para evitar ter que sair para trabalhar. Mas feriado pro Capeta era uma coisa inconcebível.
Distraído com os preparativos, o dia quase passou sem que ele percebesse. A preocupação em não ser percebido nunca fora tão grande. Poderia ter escolhido uma grande cidade, com muitas pessoas e movimentos. Desistiu. O inferno estava cheio daquilo tudo. Queria descanso do caos.
Chegou caminhando na praça quase no fim da tarde. O sol já tava mais brando, o vento fresco, alguns pássaros desavisados da sua presença cantavam. Escolheu um banco qualquer e sentou-se. A praça estava quase vazia. Estaria se não fosse um sorveteiro ateu, e uma moça que lia seu livro, tranqüilamente, esquecida. A jovem bonita em seus 17 anos admirou-se da presença daquele rapaz, sentado quase perto dela. O mais certo é que o tivesse visto antes, a cidade era pequena demais pra não se conhecerem. O interesse pela leitura foi-se embora. Agora apenas observava o rapaz que não fazia idéia de quem fosse, sabia apenas que era bonito, não como os rapazes da televisão. Apenas ela achara ele bonito, e isso lhe valia. Ficou imaginando quem era o rapaz, se era da cidade, novo morador ou apenas um visitante. Ficou imaginando um namoro. O desespero do amor quase lhe chegou ao coração, mas ficou com a tranqüilidade de quem fica de longe, apenas olhando.
O diabo percebeu a moça logo que chegou, mas não deu importância. Queria sentar-se e ficar no sol, no vento, tranqüilo. Depois de um tempo passou a observa-la. Adivinhou o interesse dela por ele. Deu uma olhada de lado que fez a moça ficar sem graça e tentar disfarçar abrindo, desajeitada, o livro que havia sido fechado. Admirou-se de sua beleza juvenil, seus cabelos louros, o corpo firme e macio, a pele branca. Começou a pensar em tudo que faria para seduzir aquela mocinha bonita. Teria toda a sensualidade que quisesse. Depois, insatisfeito, acenderia um cigarro como os mortais enquanto ela cochilasse em seu braço. Um pouco depois sumiria dali, deixando uma linda mulher apaixonada, e perdida. Naquela cidade ainda se perdiam as mulheres.
Não quis nada daquilo. Lembrou-se de quantas mulheres já havia seduzido. Lembrou-se da fumaça do inferno e desistiu do sexo e do cigarro. Queria algo novo, mas o que pode ser novo pra quem é quase tão antigo quanto a própria existência. A moça continua a lhe observar, ele já não se importa mais com ela. Caminha até o sorveteiro e fica distraído olhando à sua volta.
_ O que o rapaz vai querer?
_ Um sorvete. De baunilha.
Volta, senta-se no mesmo banco de antes e observa o por do sol. A vida foi doce por uma única vez.
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