segunda-feira, 25 de junho de 2007

Tempos.


Eu nunca soube de verdade quem eu era, ou quem deveria ser. Nunca me ensinaram.

Na casa antiga, dos tempos infantis, eu era apenas o neto de minha avó velha. Pais eu tive, isso foi contado por minha avó, mas não os conheci. Vivíamos quase sozinhos. Eu tinha um gato, Anastácio, que era mais de minha avó que meu. Só nós três pela casa quase sempre silenciosa. Às vezes vovó ouvia músicas velhas que eu gostava de ouvir também. Mas a música era pouca.

Os sons que me acompanhavam eram os da vida acontecendo. O chiado do chuveiro elétrico que demorava a esquentar a água. O barulho dos bolos de cenoura. O almoço sendo preparado. O horror das visitas noturnas dos morcegos à grande sete-copas do quintal. Era uma vida solitária vista de fora. Mas por dentro tudo é diferente.

Eu tinha amigos. Vários além de Anastácio. Jesualdo era o mais presente em casa, velho, porém mais jovem que minha avó. Conversávamos os três, minha avó bebendo café com a visita, e eu uma laranjada que trazia a cor do sol nos dias de verão. A chuva caía. O quintal era pura lama nesses dias.

Um dia vovó sentiu falta de Jesualdo. Perguntou por ele. Lamentei:

_Morreu tem duas semanas. Ataque do coração.

Depois veio João Getúlio, Eunório, Casemiro... Todos os que a minha imaginação podia inventar e que a paciência da velha podia tolerar.

Um dia larguei os amigos imaginários. Nunca mais nos vimos. Não teve brigas ou discussões, só a vida de verdade que os deixou de lado. A escola, os amigos, os domingos, o futebol... Vovó cada vez mais velha, mais criança, e eu tentando me tornar um homem.

O gato há tempos que não existia. Agora era um cachorro. Anastácio. A velhinha gostava do nome. Ou simplesmente não conseguia se lembrar do outro que eu tinha dado: Carlos. Eu gostava de poesia e o primeiro ano da faculdade de Letras me fez escolher esse nome. No segundo vovó morreu. Vieram alguns parentes. Um filho que se ausentara da mãe e a chorava agora. Todos tristes e solidários. Resolvi seguir sozinho com Anastácio. Estudava de noite, trabalhava de dia. Uma vida normalmente triste.

A namorada veio no terceiro ano. Ia ser médica. Toda prática foi mudando minha vida. Arrumou a casa, comprou ração pro cachorro... O casamento veio depois. Três anos mais tarde, eu formado, lecionando, ela na residência: cardiocirurgia.

Tudo posso ver hoje. Não podia antes. A gente não vê o que está vivendo, e é bom que seja assim.

Lúcia dorme agora. Está grávida de cinco meses. Eu acordado não sei o que pensar. Vou ser pai. Um pai que não sabe como se deve ser. Mas vou aprender com o tempo. Vou trocar fraldas e ficar sem dormir. Vou me preocupar com os tombos. Vou me orgulhar da sua masculinidade sendo mostrada nas minhas rodas de amigos. Vou ter uma nora. Vou ter cabelos brancos. Vou ter netos. Vou ser velho. Será que o Eunório morreu???

_ Felipe?

_ Oi.

_ Vem deitar, vem!

Às vezes a vida me espanta.

sábado, 16 de junho de 2007

Filho.


Um cheiro quente de baunilha recendia por toda a casa. Era o bolo que a mãe assava quase todas as manhãs. O menino já estava acordado, mas esperava na cama, o que não se sabe, apenas ficava ali deitado admirando os fantásticos desenhos que a luz do sol deixava nas paredes, quando passava pela cortina rendada de branco.

A vida de criança é toda assim, desenhada, rebuscada, com detalhes de rococó barroco, mas sem cores, essas ainda não foram decididas, tudo é branco e luminoso.

As batidas saem da porta de madeira pintada de azul muito calado.

_ Meu filho. Vem. O café está quase pronto.

_ Já vou mãe. Mas não foi de imediato. Levantou-se. Não se decidia ir ainda.

No quarto sua figurinha se encontra com o espelho, se olha e seu olhar se mede do alto da sua cabeça de cinco anos. O pijama, colorido de xadrez, lhe deixa com um ar desprotegido. Mas é só ilusão. Nesta fortaleza ele não corre riscos, é o rei, cuidado por dois fiéis guardiões.

Um é o forte cavaleiro louro, matador de dragões, que sai todo dia bem cedo em seu cavalo branco ano noventa e quatro para não enfrentar o engarrafamento no caminho do escritório de contabilidade onde trabalha. A outra é a linda feiticeira que tem o magnífico poder de deixar o mundo inteiro com cheiro de baunilha, canela, chocolate e até de frango assado.

O menino está bem guardado e sabe disso. Dono dessa consciência de rei abre a porta do quarto e sai correndo pela casa. Chega na cozinha e olha meio desconfiado para a mãe, com aquela desconfiança que só se tem quando ainda não se perdeu a inocência de seus cinco anos.

_ Oi!

_ Olá, meu filho! Bom dia! Sente-se. Vamos comer, quer um pedaço de bolo?

_ Quero... Mãe...

_ O que?

_ Eu tive um sonho.

_ Ah é? Então me conte.

_ Eu sonhei que era grande e era triste e vocês não estavam mais comigo. Tudo cinza. Ser sozinho é triste mamãe. Eu não gosto disso.

A mãe deixou escapar um sorriso constrangido, meio de lado. Ficou olhando o filho que comia o bolo satisfeito. Lembrou-se de quando ele era um bebê e percebeu como o tempo passou depressa. De repente a tristeza de saber que não ia estar com ele eternamente.

_ É apenas um sonho meu filho. Logo você se esquece disso tudo.

O menino da uma risada gostosa ao ouvir as palavras da mãe, ele não ficou cinza, ainda é branco, com a boca cheia de bolo e o copo com leite e chocolate sobre a mesa.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Como?


_ Como? Tem alguma coisa errada... O doutor está enganado.

_ Sinto muito senhor, mas é isso mesmo que ouviu. Não pudemos fazer nada. Seu filho morreu. Seja forte. O médico diz isso e sai fechando a porta do quarto. A mulher ainda está deitada, dormindo, exausta. O parto foi complicado, mas ela tem o semblante alegre, satisfeito e dorme profundamente. Agora o marido chora agachado em um canto do quarto, desesperado. O filho era o que eles mais queriam. Foram meses felicíssimos, planos maravilhosos e um amor crescente.

Tudo se acabou, o que ele espera é a mulher acordar para dar a noticia. Nessa espera imagina como ela ainda é feliz... E que distancia essa que separa os dois. Um abismo de tristeza aonde ela também vai cair assim que acordar.

Ela está tão bonita dormindo... Ele chora desesperado. A dor dilacera as suas entranhas. E ele espera.

_ Tomara que ela nunca acorde.
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