segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Trocado.


O quarto estava com todas suas luzes acesas. As janelas também estavam abertas e uma brisa quente balançava de leve as cortinas vermelhas. Diante do espelho de uma grande penteadeira um homem se contemplava. Havia poucos minutos que saíra do banho, ainda sentia na pele jovem e rija o molhado da água quente que caíra forte do chuveiro.
Ele sempre se dedicou com amor singular ao banho. Sentia que a água quente lavava sua alma e que essas sujeiras escorriam pelo ralo. Não sabia explicar como essas coisas de alma desciam junto com a água. Era quase meditação. De alguma forma essa sujeira voltava para sua alma, e voltava o cansaço, a tristeza, a desilusão... Nunca fora convidada para voltar a essa casa que era o corpo do homem. Mas voltava... Só que agora essa preocupação não lhe acometia, as sujeiras estavam longe e nem se via anunciar o regresso dessa que escorria. Ele estava fresco, nu diante do grande espelho da grande penteadeira no quarto onde as cortinas vermelho escuro se deixavam balançar.

A vida sempre exige do homem mascaras diversas. Ele usava algumas pensando que se defendia de algo que estava sempre a lhe apontar. Talvez se defendesse mesmo. Sua identidade se mantinha em um segredo que, às vezes, ele mesmo desconhecia. Mas ele conhecia bem a si mesmo. Seu rosto e seu corpo eram auto-analisados diariamente por varias horas. Ele era narciso. A próxima hora ia passar diante daquele espelho.

Seus olhos eram bonitos. Negros e profundos. Um olhar que desvendava mistérios nas almas alheias. Nada disso. Tinha um olhar triste, que pra se esconder dessa tristeza de seu negrume se fazia azul. Um azul irritante, meio desconfortante. Era assim que começava a se defender e sua real mascara a se manifestar.

A pele começava a ficar mais branca. Muito mais branca. A textura lembrava porcelana ou coisa parecida. Perdia toda a humanidade que tinha nela. Uma vez lhe disseram que suas bochechas poderiam se quebrar ao meio. Essas coitadas, envergonhadas com essa lembrança ficaram róseas. As pálpebras também se transformavam e um arco-íris brilhante lhe surgia ao redor dos olhos. Talvez fosse mágica. Talvez é uma palavra que nunca quer dizer nada. Mas era mágica a explicação que a vizinha nonagenária dava para o crescimento repentino dos cabelos do homem. Raspados, alongavam-se rapidamente até quase o cotovelo. Mágica.

Agora só faltava se vestir. A nudez lhe deixava desconfortável. Era nu que se sentia mais próximo de voltar a ser criança, se sentia indefeso. Todo homem ou mulher é assim. Muitas vezes perdem esse medo da nudez, e se afastam completamente de quando eram crianças. O vazio chega e toma lugar das lembranças que o corpo tinha de quando era criança. Não é esse o caso. Esse homem que vemos mantém sua nudez inocente e se veste para mantê-la assim, protegida.

A roupa é colorida, muito colorida e alegre. Uma pessoa podia ser feliz vestida daquela forma. Era o que ele sentia. Só que agora não é mais ele. Tudo muda de lugar e algumas mudanças podem mesmo assustar alguns desavisados. O homem se despede se vestindo. Agora a mulher está quase pronta.

Calça os sapatos de salto alto, bebe duas doses de vodcka, cheira algum tanto de cocaína e sai pela noite afora, protegida por essa identidade secreta. Feminina e perturbada sai pelas ruas em busca de diversões que lhe alienem desse seu mundo de transmutações diárias. Fossem outros os tempos seria tomada por um super-herói, ou heroína. Mas não hoje. Não existem mais heróis. Nem ela acreditava mais em heróis. Acreditava sim na força da maquiagem bem feita, e no que a Madonna podia fazer pelo mundo se fosse canonizada. Agora os pensamento já não são mais a mesma coisa. Na verdade eles não mais existem e o mundo gira em néon. Uma drag music qualquer tocada por um dj que não se pode definir se é daqui ou de algum outro planeta. Tudo brilha em exagero... Todos ali estão mascarados. Todos se protegendo. Não se sabe de que. É consenso que o ataque virá, não se sabe de onde.

A noite não é tão longa quanto promete ser. Ela nem sente o tempo passar. A droga e a vodcka consumidos com freqüência exagerada deixam essa sensação entorpecida. Ela não sente nada. Não está feliz, não está triste, não ama. Ela não sente nem quando a morte lhe chega. A cocaína adormece os sentidos. Enfarto causado pela overdose. Fulminante. Ela tinha 28 anos, difícil resistir num caso desses. A morte lhe chegou e ela nem soube. Porém é como se soubesse. Nunca tinha se arrumado com tanto primor. Estava realmente bonita. Era o que as amigas diziam vendo o corpo estirado no chão da boate agora em silêncio. A polícia já tinha sido avisada, estava à caminho, logo chegaria ali. Todos olhavam calados seu corpo colorido espalhado no chão. Apenas uma voz se fez ouvir, lamentando a perda daquela vida:

- "Tá Kírida"!!! Paralisou o caralho todo. Quero esses sapatos pra mim... E quero dois!

E o mundo volta a girar.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Balão?


119 Kgs foi o número que a balança digital acusou em vermelho gritante. Nessa hora Maura ouve, vindo do fundo da farmácia um risinho de escárnio. O balconista era feio, porém magro, de uma magreza insuportável, chegava a envergar. Maura desistiu de comprar o suplemento dietético com o qual pensava que fosse começar um regime para emagrecer. É emagrecer mesmo, Maura era muito gorda, e baixinha coitada. Depois da desistência o que sobrava era sair da farmácia e evitar os olhares do rapaz magricela baixando a cabeça.

Nervosa, resolveu ir caminhando para casa, queria pensar na vida. Ilusão. Poucos passos depois foi persuadida pelo sol do meio dia de que a idéia mais interessante seria não ir embora à pé. O ponto de onibus estava perto, e poucos minutos depois passava um que ia direto pro seu bairro.

O onibus chegou cuspindo gente pelas janelas. A sorte de Maura foi que mais da metade dessa gente desceu no ponto em que ela estava tentando subir. Ela se sentou logo em uma das primeiras cadeira, ali mesmo naqueles que precedem a catraca, que já não ultrapassava a algum tempo graças à forma interessante de sua cintura. Ficou ali na frente sentadinha, se é que o diminutivo lhe possa ser aplicado.

Existe uma constante na vida dos gordos e essa é o suor. Não existem tempos quando o frescor poderá estancar essas cachoeiras ambulantes. Não. Maura esta ali: sentada, suando o buço, pra não dizer bigode e esperando a hora de desembarcar em seu ponto. O cobrador do onibus olha estranho quando ela pede pra descer pela porta dianteira e comenta maldosamente com o motorista o pedido feito. Quando a porta se abre Maura paga seu passe, e ouve a gargalhada horripilante do condutor. Aquela gargalhada era coisa de cinema, de bruxa de historia infantil. Maura quase se quebra de medo ou melhor, derrete, como se fosse gelatina no sol.

Agora falta pouco pra chegar em casa, a caminhada é pequena, e a tristeza não é proporcional. Além de tudo tem a fome. Sempre tem a fome. Maura não se satisfaz. Abre a porta desesperada e corre em direção à cozinha. A geladeira é sempre um bom ombro onde se pode chorar e a lembrança de uma torta inteira de chocolate lhe deixa mais calma.

Maura come a torta inteira. Devia pesar mais ou menos 1,5Kgs, mas isso não foi problema algum. Ela é louca por chocolates. Comeria um buffet inteiro de artigos feitos de chocolate. Até sonhar com uma casa de chocolate ela já havia sonhado. Não que ela não saboreasse outras coisas, Maura não se restringia a nada, apenas o chocolate era favorito. A torta foi o calmante do dia. Maura esquecera o magricela da farmácia, o motorista maldoso, e o cobrador. Na ideia de Maura cobradores eram apenas cobradores, não existiam adjetivos que lhes pudessem ser ofertados.

A satisfação brilha nos olhos. Nesses momentos Maura até se sente feliz. O problema é que ela não pode ser feliz. Maura não vive, apenas come. Como uma pessoa que não vive pode ser feliz? Come e engorda. E junto com a gordura vem uma tristeza chata de se agüentar. É a tristeza da feiúra, a tristeza da solidão. E Maura descobriu porque engorda tanto: não é porque come, é pela solidão mesmo. Ninguém fala com ela nem se quer um bom dia. Ninguém quer ela por perto. Ou ela não se quer perto de ninguém. Não conseguimos ir tão fundo nos sentimentos de uma pessoa para descobrir a verdade.

Maura vai continuar sozinha, comendo e engordando, até chegar o dia que vai ficar tão grande quanto um balão e inflar colorida pelos ares. Depois vai estourar também como um balão. Dizem as boas línguas, simpáticas à Maura, que a cidade nesse dia vai ficar com um doce cheirinho de chocolate.

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