sábado, 13 de novembro de 2010

... ou Deus não existe.


O corpo ficou irreconhecível, espalhado pelo asfalto, desconstruído. A velha senhora não viu o ônibus que vinha em sua direção com velocidade considerável. A roda direita dianteira passou por cima. O motorista tentou uma frenagem que só serviu para que a roda traseira a arrastasse por cerca de vinte metros até parti-la em dois. Uma moça na calçada gritou desesperada. Era tarde. As vísceras pelo chão.
Conceição casou-se jovem, aos quinze anos, um casamento arranjado pelo pai. Conheceu o marido duas semanas antes do casamento. Era branca, mimosa, de cabelos pretos e sorriso branco. Ele alto, moreno, um bigode lustroso e onze anos mais velho. Ficou feliz por saber que o marido tinha um bigode e não permitiu que ele se desfizesse do tal durante toda a vida.
Moravam na fazenda. Ele cuidava da roça e ela da casa. Tiveram onze filhos, dois morreram e os outros nove não se tornaram grande coisa na vida, mas ainda assim eram motivo de orgulho da mãe e às vezes do pai. A vida pequena do interior. Mudaram-se para a cidade e moraram em uma casa pequena apenas os dois e a filha que não se casou. Vieram muitos netos, vinte e três ao todo, todos lindos, alguns parecidos a macaquinhos e ainda assim lindos. Envelheceram devagar, não tinham pressa. Ele morreu. Sentado em sua cadeira predileta sentiu uma dor no peito e caiu no chão. A filha solteirona correu pelo socorro. Tarde demais. Ou cedo, depende que quem sente.
Parecia que ela também morreria a qualquer momento. Uma tristeza dominadora montada à cavalo em suas costas. O tempo passou. Passaram-se onze anos. Passam as horas.
Sentada na cadeira do marido ela esperava sua hora. Conceição e a filha, sempre tristes sempre alegres.
As visitas dos filhos foram rareando com o tempo. Os netos vinham ainda menos. De manhã ela varria na calçada as folhas da imensa sibipiruna plantada em frente ao muro. Todo dia. Cochilava em frente à televisão sempre dizendo que estava atenta. Pedia a Deus todos os dias pelos filhos, pelos netos e implorava por morrer deitada. Dormindo.
Ela não rezou com muita fé...

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