sábado, 5 de maio de 2007

"A saudade nas noites de frio..."


A velhice lhe chegara sem que pudesse ser impedida. Ela havia lhe mandado todos os sinais de aviso, mas ele não pode fazer nada. Sua consciência não aceitava os anos, a juventude lhe seria eterna se possível, mas não fora. O frescor da vida lhe escapou entre os dedos e agora com noventa anos era apenas um velho, e como a maioria, sozinho.

Tinha uma neta que insistia em lhe visitar duas vezes por mês e contava as coisas de sua vida, mas ali aonde ele estava, notícias do mundo não eram coisas agradáveis de serem ouvidas. A neta era tão doce, jovem e bonita. Era o que ele queria ser com a devida mudança de gênero.

Passava momentos alegres ao lado dessa neta que era o único dos seus que ainda lhe queria bem. E as notícias que ela trazia faziam o mundo tão fantástico, que se pudesse passaria outra vida ao lado dessa amiga que lhe aparece em tão alta idade. O perfume que a moça exalava era como ela, fresco, e lhe preparava para os dias que iriam se apresentar implacavelmente.

Ela não sentia a velhice. A inimiga do homem ainda não tinha descoberto a menina de 17 anos que visitava o avô, levando-lhe algum doce, jornais recolhidos e alguma história de sua ainda jovem, por isso mesmo mais cativante, vida.

Os olhos eram os mesmos, do mesmo negror. Sinal da família que sempre carregara lindos olhos negros. As histórias narradas pela moça eram lindas. Começara a faculdade de arquitetura e queria reconstruir o mundo e o homem, para que as coisas se respeitassem nas suas naturezas. Estava namorando um rapaz, jovem como ela, e o pintou como um Adonis moderno para o avô, deixando no coração do velho um arranhadinho de ciúmes, que se sentia feliz ao mesmo tempo, por ver a felicidade da filha de seu filho. Contava também dos sambas que ouvia ultimamente e de como gostava da alegria e tristeza simultâneas nessas músicas. Lia alguma notícia especial dos jornais que trazia consigo. Falava dos livros que lhe enfeitiçavam.

No fim das suas horas abraçava esse senhor com o afeto mais profundo que um homem pode ter pelo outro, e saia chorando. E se olhasse para trás veria que os olhos do avô também choravam. A alegria da juventude então se cansava do asilo em que ficara todo esse tempo e corria leve atrás dos cabelos encaracolados da jovem, que o vento insistia em balançar. O homem então sentia sua antiga companheira lhe chegar fria e rabugenta. E tudo voltava a ficar velho, feio, desagradável...

Ele sabia que só depois de duas semanas é que ela voltaria para vê-lo. O rapaz que lhe ajudava e era responsável pelo seu bem estar sofria dois dias com a amargura da saudade do velho. Depois o velho se rendia a doçura da mesma saudade e contava ao jovem as maravilhas que a moça trazia. O fazia de forma tão verdadeira que o moço se apaixonara. Não pela neta que visitava o velho, porque essa nunca tinha visto, sua folga era nos dias da visita. Apaixonara-se pela neta pintada em cores tão vivas.

Passaram-se alguns meses. Noventa e um ele completaria em alguns dias. Era muito tempo pra se viver, não tinha necessidade de todos esses dias. A metade já lhe satisfaria, mas os dias insistiram em vir, um após o outro, como se fossem os elos de uma corrente que o prendia cada vez mais.

A neta que antes vinha com uma freqüência ordenada começou a falhar. Talvez os trabalhos da faculdade. Talvez os amores de um novo namorado. Talvez a diversão com os novos amigos. Tudo era boas desculpas para justificar a ausência em dia que era esperada com tanta paixão. A única coisa que ele não perdoaria era que ela visitasse outro velho. Esse posto já era seu e só seu.

O rapaz que lhe cuidara não cuida mais. Mudou-se de cidade para se casar com uma moça bonita. Jamais esquecerá a paixão pela neta do seu velho. Mas essa moça de agora era de verdade e tinha uns beijos deliciosos. O velho desejou boa sorte. Um abraço. Um adeus. O moço foi embora e chorou, escondido no quarto, as saudades do avô postiço com suas histórias de uma neta fantástica. O velho também sentiu falta do amigo, mas na sua idade já sabia que tudo se vai um dia.

A neta se fazia mais demorada, só que dessa vez a esperança não acabava no homem. Feito criança esperando pelo aniversário em que teria como presente a alegre visita da menina. Essa espera lhe fazia lembrar a mãe, a casa com piso de madeira, os oito anos, o cheiro de baunilha que recendia pela casa em dia de festa. Mas tudo era vago e antigo e chorava por dentro sua insuficiência.

O dia veio. A neta não. Não tem o que comemorar. Recolhe-se em seu quarto e escreve em um papel coisas que a memória insiste em trazer dos seus antigos guardados.

No outro dia não se levanta. A neta é avisada da morte e sofre e chora e se castiga pelo esquecimento. Se lembra da musica que o velho de olhos negros sempre cantava em seus ouvidos em dia de visita:

"A saudade é dor pungente, morena. A saudade mata a gente, morena."

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