domingo, 28 de outubro de 2007

Frango caipira em porcelana de Limoges.


O cheiro do frango vazava pelas janelas da cozinha. No quintal, os amigos reunidos bebiam uma cerveja enquanto o outro amigo cozinhava aquele frango. Era caprichoso. Todos ali depositavam esperanças nele. O pai, a mãe, a irmã, o namorado da irmã, a própria namorada. Os amigos não têm voz. Não devem falar se ficou ruim. Apenas que ficou muito bom. A verdade é que nenhum deles faz isso, mas são amigos, fazer o que? Foram escolhidos. A namorada também foi escolhida. Todos gostavam dele e o mais importante, ele também de todos. E mais importante ainda: a namorada era bonita. E muito mais importante ainda: batia nela. O cunhado, irmão da namorada não era boa gente. Ele nunca gostou dele. Um gordinho bicha que não valia nada. A família dela ele respeitava. O irmão não. Bateu nele. Na verdade mandou matar. Ela coitada não sabia disso. Chorou desesperadamente verdadeira. A morte não deu certo. O gordinho ficou aleijado. Anda de cadeira de rodas. O tiro foi na cabeça. Ficou bobo. Não sabe conversar, não sabe andar, não sabe fazer mais nada. Ele sabia fazer algumas coisas antigamente. Ele nem sequer se lembra que existe um cunhado que o odeia e sorri toda vez que aquele rapaz simpático lhe chega. A verdade é que ele sorri pra todo mundo...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Conversando na mesa do bar.


_ Conheci uma morena rústica hoje.
_ Rústica? Rústica porque? Ela é mal acabada?
_ Não cara...
_ É que pra mim rústico é isso. Mal acabado. Sabe? Moveis de madeira semi-bruta, sem polimentos, uma coisa meio sem sofisticação?
_ Não! Já falei que não é isso!
_ Então o que é?
_ Ela era rústica, uai! Meio selvagem...
_ Conheceu como?
_ Na verdade não a conheci não.
_ Mas você falou que havia conhecido! Garçom! Outra cerveja, por favor.
_ Eu estava sentado em um banco em frente à nossa sala, um pouco antes da aula de Semântica...
_ E?
_ E ela passou.
_ Passou como?
_ Andando oras!
_ E ela é bonita ou mal acabada?
_ Ela é linda! Já falei que minha morena rústica não tem nada a ver com seus moveis velhos.
_ Sua morena?
_ É! Minha!
_ E como é essa “sua” morena?
_ Sorriso lindo, cabelos pretos, muito longos. Ela estava com eles trançados...
_ E os peitos?
_ Ela os tem!
_ Que bom! Você sabia que o professor de Semântica tem uma certa queda por seus alunos?
_ E ela tinha uma tatuagem nas costas... Alunos?
_ É alunos. Não alunas. Tatuada? Adoro mulheres tatuadas. O que era?
_ O que?
_ O desenho da tatuagem?
_ O Che.
_ Guevara?
_ Sim. Você já ficou com alguma mulher tatuada?
_ Não... Quer comer algo? Estou com fome.
_ Peça uma porção de fritas.
_ Pode ser... Que mau gosto tatuar o Che. Ela é petista?
_ Não sei, mas tem cara. E tem cara também de quem ouve Chico.
_ Todo mundo ouve Chico na faculdade, esqueceu que é pré requisito pra ser um verdadeiro alternativo?
_ ...
_ E aí?
_ O que?
_ Sua morena! Morreu?
_ Não sei. Acho que não. Ela não tem cara de quem morre... Deve estar ouvindo Chico, fumando um cigarro, tomando uma cerveja.
_ Eu também fumo!
_ Você não é morena.
_ E muito menos rústica.
_ Idiota!
_ Garçom!
_ Quem te falou que o professor é gay?
_ Não falaram que ele é gay. Disseram apenas que ele tem uma certa queda pelos alunos.
_ Alunos homens! Então é gay!
_ Sim!
_ Quem te falou?
_ O pessoal do terceiro ano. Você está apaixonado pela morena?
_ Acho que sim.
_ Será que ela tem nome?
_ Não sei não. Acho que é Letícia.
_ Porque você acha isso?
_ Não sei.
_ Será que vai vê-la novamente?
_ Talvez. É só esperar no mesmo lugar... Qualquer dia ela passa de novo.
_ Você está mesmo apaixonado... Que bizarro!
_ E qual o problema?
_ Não é da minha conta se houver algum.
_ Não posso estar apaixonado?
_ Pode.
_ E outra, é só por hoje!
_ ...
_ Então?
_ Será que amanhã vai conseguir não estar?
_ Claro que vou, e porque não conseguiria?
_ É que vicia...

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Cândido.


Domingo é o sétimo dia. É o descanso de quem trabalhou a semana toda e precisa desse fôlego pra voltar a trabalhar a semana toda. É também o dia do tédio na televisão, das comidas hipercalóricas em cima da mesa, de visitas à família, dia de missa para alguns... Aqui nessa casa nada disso acontece. Domingo é o dia da limpeza, o dia da lavagem, e toda a roupa branca se encontra estendida no varal e balança com um vento forte e quente. A roupa não é pouca, mas logo estará toda seca. São seis uniformes brancos de um enfermeiro que dispõe de tempo para lava-los apenas aos domingos. Um para cada dia estendido um ao lado do outro, como se fosse uma semana de verdade. Uma semana iluminada que o sol forte refulge no branco da roupa bem cuidada, perfumada de lavanda, que balança. Para alguns seria apenas uma semana sem graça, sem cores, apática. Seis calças, seis camisas, seis cuecas, seis pares de meias, seis jalecos.
O domingo não é um dia branco. Zildo está cansado de toda essa alvura. Teve que botar muita força nos braços pra deixar a roupa livre de seus encardidos. Exigência do hospital. Agora está deitado, livre de qualquer roupa que lhe lembra o branco do hospital. Dorme nu. O vento quente nina seu corpo franzino. O sono é pesado, a respiração lenta e pode se ver um fio de suor lhe escorregando pelas costas. Em sonho, Zildo caminha por uma grande cidade branca, toda azulejada, esterilizada, desinfetada que cheira a álcool e pinho. Poderia ser perfumada com lavanda, mas esse é um perfume muito alegre, colorido. Caminha por muito tempo por essas ruas brancas por onde caminham muitas gentes brancas. Zildo já está cansado de andar. Para diante de um grande supermercado branco. Prateleiras brancas cheias de caixas brancas de um único produto exposto em suas enormes prateleiras enfileiradas com ordem e higiene. Procura em vão. Todas elas suportam o peso de um mesmo produto. Sabão em pó. Toneladas de sabão todo azul, como sabe Zildo, mas não se pode ver esse azul. As caixas são todas muito brancas e não permitem que outra cor apareça de seu interior. Ele quer outra coisa, não quer mais o branco. Sabe que tem azul ali dentro, mas esse azul só lhe servira pra deixar suas roupas mais brancas. Zildo se desespera e grita e corre e empurra as prateleiras derrubando-as. Elas, coitadas, caem como dominós enfileirados. As pessoas brancas o olham com ar de reprovação. Depois desprezo. A raiva chega logo em seguida. Todos começam a lhe apontar os dedos e gritam seu nome e lhe xingam, e são todos ameaças.
Zildo corre, sai do supermercado e corre, corre muito, desesperado. Quando olha para trás a cidade é um grande amontoado branco de espuma de sabão... Tudo está se desfazendo. Seus pés não encontram mais firmeza e se sente afundando na espuma perfumada. Em segundos começa a se afogar. A espuma lhe entra pela boca e nariz. Os olhos ardem muito. Já não escuta mais nada.
Zildo acorda suado. Seus sonhos lhe deprimem. Ele queria sonhar com pornografias, sonhar com a sujeira, sonhar com o preto. Infelizmente não pode controlar essa sua vontade. Sabe que os pesadelos lhe deixam aliviado quando acorda e não sabe que se o sonho fosse bom, a frustração viria rápida e certeira. Filosofias que não passam pela cabeça de Zildo. Levanta-se e caminha ainda pelado para o quintal de sua casa pequena. Precisa recolher a roupa e passa-la a ferro. Quando mira o varal suas roupas estão todas sujas. Um vento forte deve ter alevantado aquela poeira toda. Estão todas avermelhadas. Zildo sorri. Queria que sua vida tivesse algumas daquelas nuances mais quentes, isso lhe lembrava o sangue que lhe corria nas veias e não aquele que ajudava a estancar. O vermelho do sexo porque em sua cabeça o sexo era vermelho. Um suspiro resignado lhe escapa. Recolhe as roupas coloca tudo dentro do tanque, abre a torneira. Súbito lembra-se que o sabão acabou. Caminha até seu quarto, veste-se com uma roupa que não é branca e sai para o supermercado. Mas é domingo...
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