quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Cândido.


Domingo é o sétimo dia. É o descanso de quem trabalhou a semana toda e precisa desse fôlego pra voltar a trabalhar a semana toda. É também o dia do tédio na televisão, das comidas hipercalóricas em cima da mesa, de visitas à família, dia de missa para alguns... Aqui nessa casa nada disso acontece. Domingo é o dia da limpeza, o dia da lavagem, e toda a roupa branca se encontra estendida no varal e balança com um vento forte e quente. A roupa não é pouca, mas logo estará toda seca. São seis uniformes brancos de um enfermeiro que dispõe de tempo para lava-los apenas aos domingos. Um para cada dia estendido um ao lado do outro, como se fosse uma semana de verdade. Uma semana iluminada que o sol forte refulge no branco da roupa bem cuidada, perfumada de lavanda, que balança. Para alguns seria apenas uma semana sem graça, sem cores, apática. Seis calças, seis camisas, seis cuecas, seis pares de meias, seis jalecos.
O domingo não é um dia branco. Zildo está cansado de toda essa alvura. Teve que botar muita força nos braços pra deixar a roupa livre de seus encardidos. Exigência do hospital. Agora está deitado, livre de qualquer roupa que lhe lembra o branco do hospital. Dorme nu. O vento quente nina seu corpo franzino. O sono é pesado, a respiração lenta e pode se ver um fio de suor lhe escorregando pelas costas. Em sonho, Zildo caminha por uma grande cidade branca, toda azulejada, esterilizada, desinfetada que cheira a álcool e pinho. Poderia ser perfumada com lavanda, mas esse é um perfume muito alegre, colorido. Caminha por muito tempo por essas ruas brancas por onde caminham muitas gentes brancas. Zildo já está cansado de andar. Para diante de um grande supermercado branco. Prateleiras brancas cheias de caixas brancas de um único produto exposto em suas enormes prateleiras enfileiradas com ordem e higiene. Procura em vão. Todas elas suportam o peso de um mesmo produto. Sabão em pó. Toneladas de sabão todo azul, como sabe Zildo, mas não se pode ver esse azul. As caixas são todas muito brancas e não permitem que outra cor apareça de seu interior. Ele quer outra coisa, não quer mais o branco. Sabe que tem azul ali dentro, mas esse azul só lhe servira pra deixar suas roupas mais brancas. Zildo se desespera e grita e corre e empurra as prateleiras derrubando-as. Elas, coitadas, caem como dominós enfileirados. As pessoas brancas o olham com ar de reprovação. Depois desprezo. A raiva chega logo em seguida. Todos começam a lhe apontar os dedos e gritam seu nome e lhe xingam, e são todos ameaças.
Zildo corre, sai do supermercado e corre, corre muito, desesperado. Quando olha para trás a cidade é um grande amontoado branco de espuma de sabão... Tudo está se desfazendo. Seus pés não encontram mais firmeza e se sente afundando na espuma perfumada. Em segundos começa a se afogar. A espuma lhe entra pela boca e nariz. Os olhos ardem muito. Já não escuta mais nada.
Zildo acorda suado. Seus sonhos lhe deprimem. Ele queria sonhar com pornografias, sonhar com a sujeira, sonhar com o preto. Infelizmente não pode controlar essa sua vontade. Sabe que os pesadelos lhe deixam aliviado quando acorda e não sabe que se o sonho fosse bom, a frustração viria rápida e certeira. Filosofias que não passam pela cabeça de Zildo. Levanta-se e caminha ainda pelado para o quintal de sua casa pequena. Precisa recolher a roupa e passa-la a ferro. Quando mira o varal suas roupas estão todas sujas. Um vento forte deve ter alevantado aquela poeira toda. Estão todas avermelhadas. Zildo sorri. Queria que sua vida tivesse algumas daquelas nuances mais quentes, isso lhe lembrava o sangue que lhe corria nas veias e não aquele que ajudava a estancar. O vermelho do sexo porque em sua cabeça o sexo era vermelho. Um suspiro resignado lhe escapa. Recolhe as roupas coloca tudo dentro do tanque, abre a torneira. Súbito lembra-se que o sabão acabou. Caminha até seu quarto, veste-se com uma roupa que não é branca e sai para o supermercado. Mas é domingo...

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