quarta-feira, 30 de maio de 2007

Tombo.


A porta se abriu e Kátia viu o noivo transando com o encanador do prédio na sala do apartamento recém decorada por ela para os dois morarem após o casamento. Fechou a porta, tranqüila, e sem ser percebida ficou olhando, parada.
O sexo era selvagem. Ela também foi. Matou os dois a facadas. Pouco depois ligou pra polícia e se entregou, logo chegariam.
A ansiedade fez o tempo se demorar. Ela se cansou e se atirou da varanda do décimo quarto andar. Caiu na calçada duplamente condenada ao inferno: homicida e suicida. Mas nem isso lhe sobrou.
Ela era uma estudante de filosofia, atéia, que conhecera o namorado tatuado na faculdade. Tudo o que fazia sempre lhe pareceu livre, moderno e civilizado. É uma pena que às vezes as aparências enganem.

domingo, 20 de maio de 2007

Intimidades


O caderno com algumas folhas escritas deixado sobre a mesa desorganizada. Um lápis com a ponta quebrada ao lado. Jacinta saíra atrás de algum apontador. Engraçado, nunca se habituara a escrever com canetas. Apenas o lápis. Talvez algum resquício da infância dentro de sua cabeça.
Agora era a mulher madura em quem o vestido vermelho caía muito bem. Era de bom tecido, tinha um bom corte e o que mais importava: o marido gostava que ela usasse esse vestido.
O que o marido nunca revelara era o porque de tanto gostar desse vestido, mas agora não será mais segredo. O tesão que se despertava nele vendo ela tão bonita era que fazia esse gosto. E hoje, vendo ela meio abaixada, a bunda meio empinada, o vestido vermelho...
O sexo foi inevitável. Ali mesmo encostados no armário onde ela procurava o apontador na posição fatídica. O gozo do homem e da mulher de quarenta anos, sozinhos, livres. Não eram apaixonados, se amavam, mas de forma branda e constante. Nada de demonstrações de carinho em público ou declarações exageradas de amor. Alguns até diziam que eles não se gostavam. Ninguém sabia que era nessas horas que eles mais eram felizes e mais cúmplices um do outro.
O apontador já não interessa mais. O diário esquecido em cima da mesa esperando que essa aventura lhe chegue nas páginas brancas que ainda restam. Mas não agora.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Um.


A manhã já ia adiantada quando comecei a despertar. O dia estava frio e deixava o corpo com uma vontade de ficar na cama, junto aos cobertores que aqueciam todo o meu mundo. Mas eu tinha que levantar, havia coisas a fazer.

As janelas do apartamento abertas deixavam que a luz inundar todos os lugares. Mas era uma luz baça... O dia estava nublado. Eu, sentado numa cadeira terminava de acordar enquanto a água do café não fervia. O que era mesmo que eu tinha que fazer? Não me lembrava, mas sempre havia algo por fazer e isso graças à minha vida desorganizada. Tomei o café puro, não tinha o que comer e me decidi tomar um banho. Descobri a resistência do chuveiro elétrico queimada, o que me fez tomar um banho quase gelado que me fazia dar pulos na esperança de esquentar um pouco o corpo. Banho frio era saudável, era o que diziam, mas isso não me consolava muito naquela hora. A toalha eu esquecera no quarto, o que me fez sair correndo do banheiro. É que mesmo morando sozinho sentia vergonha de sair nu do banheiro. A janela do quarto escancarada deixava o vento frio do começo do inverno entrar e gelar ainda mais meu corpo molhado. Enxugo-me às pressas e me deito denovo, a fim de me esquentar um pouco. Acabo adormecendo...

Já é hora do almoço e perdi toda a manhã. Penso isso ainda deitado. Levanto-me novamente, me visto e tento buscar coragem para sair de casa. Escovo os dentes pensando na fome que sinto e quando termino essa tarefa relembro que a torneira da pia está com vazamento. Uma goteira interminável, mal sentida nas contas do mês graças ao advento do poço artesiano do condomínio.

Saio de casa, tranco a porta, desço pelo elevador os oito andares que me separam do chão e me encontro com os escolares infantis, prontos para irem em direção aos estudos vespertinos. Eles são eufóricos e barulhentos. A verdade é que eu não gosto muito de crianças entusiasmadas. Prefiro a melancolia da velhice, apesar de estar mais perto de criança do que de velho com meus vinte e dois anos.

Caminho até a padaria da esquina. Compro logo o que preciso sem me demorar muito. Fico constrangido na padaria. A balconista sempre me olha de maneira desconcertante, o que me leva a ter algum recalque de misoginia passageira. Talvez a minha virgindade me faça mais tímido, ou talvez seja virgem ainda por causa da timidez, não sei dizer, o que sei é que a balconista suada não me desperta apetites.

De volta à minha casa. Como pão com um apresuntado vagabundo e bebo um iogurte de frutas mais vagabundo ainda pra tentar fazer tudo descer mais facilmente. Resolvo fumar meu primeiro cigarro do dia. Eu sempre falo que o pior cigarro do dia é o primeiro. Mas é inevitável ou tem como ir direto para o segundo? A pressão cai um pouco e eu fico meio entorpecido. Na verdade é preguiça mesmo. Durmo.

Acordo com a campainha tocando. É um colega meu da faculdade que por uma coincidência infeliz é também meu vizinho. Ele me indaga se estou bem, com algum problema, por causa das faltas freqüentes. Tento alguma explicação que não me deixe com cara de vagabundo e ele se vai. Já são seis da tarde e o dia me escapou pelas mãos.

A noite vai chegando e transformando tudo o que antes era outra coisa. Alguém me disse que essa é uma hora perigosa, mas não me lembro mais quem foi. Coloco um disco pra tocar e me distraio com as musicas, com os meus cigarros, que agora já não me dão preguiça. Resolvo beber vodcka sozinho. E resolvo cantar também sozinho. Quando a noite se completa eu saio sozinho atrás de algo que me distraia um pouco os pensamentos. Sei que vou ficar sozinho em algum bar, bebendo e observando os andantes. Todos risos e alegrias e eu comigo em meu mundo.

O lugar é conhecido, sou freqüentador assíduo. A única pessoa que me fala é o dono do bar, mas nosso dialogo é sempre objetivo. Peço uma cerveja e recebo um pois não me indicando que serei atendido. Hoje tem algo diferente aqui, uma presença nova. Me sinto observado por outro como eu. Pouco depois descubro que é outra. Sozinha como eu, bebendo, e pensando em algo que só ela mesma pode saber. Nos contemplamos por muito tempo.

O bar já vai fechar. Pago minha conta e quando percebo ela já não está mais ali. Uma certa mágoa me bate por não ter conversado com ela, mas passa instantaneamente. Estou acostumado a não ter pessoas para mim. Saio do bar e caminhando busco o caminho de casa nessa noite bastante fria. Na esquina encontro-me com ela, que me olha, mas não fala nada. Eu também olho e como ela também não falo nada.

Ela se aproxima, segura a minha mão e me puxa para um destino que desconheço. Logo chegamos na sua casa. Nenhuma palavra é dita. O silêncio nos une cada vez mais. Agora somos amigos, mas não são horas para conversar com amigos. Ela me leva ao seu quarto perfumado e se despe dos vários agasalhos também perfumados que lhe cobriam o corpo. Nua, faz o mesmo comigo.

Nos deitamos. Nos abraçamos e acabamos dormindo nesse abraço. A manhã chega e nos acorda. è a primeira vez que não me sinto triste de manhã. Eu já a amo e ela me diz bom dia.

sábado, 5 de maio de 2007

"A saudade nas noites de frio..."


A velhice lhe chegara sem que pudesse ser impedida. Ela havia lhe mandado todos os sinais de aviso, mas ele não pode fazer nada. Sua consciência não aceitava os anos, a juventude lhe seria eterna se possível, mas não fora. O frescor da vida lhe escapou entre os dedos e agora com noventa anos era apenas um velho, e como a maioria, sozinho.

Tinha uma neta que insistia em lhe visitar duas vezes por mês e contava as coisas de sua vida, mas ali aonde ele estava, notícias do mundo não eram coisas agradáveis de serem ouvidas. A neta era tão doce, jovem e bonita. Era o que ele queria ser com a devida mudança de gênero.

Passava momentos alegres ao lado dessa neta que era o único dos seus que ainda lhe queria bem. E as notícias que ela trazia faziam o mundo tão fantástico, que se pudesse passaria outra vida ao lado dessa amiga que lhe aparece em tão alta idade. O perfume que a moça exalava era como ela, fresco, e lhe preparava para os dias que iriam se apresentar implacavelmente.

Ela não sentia a velhice. A inimiga do homem ainda não tinha descoberto a menina de 17 anos que visitava o avô, levando-lhe algum doce, jornais recolhidos e alguma história de sua ainda jovem, por isso mesmo mais cativante, vida.

Os olhos eram os mesmos, do mesmo negror. Sinal da família que sempre carregara lindos olhos negros. As histórias narradas pela moça eram lindas. Começara a faculdade de arquitetura e queria reconstruir o mundo e o homem, para que as coisas se respeitassem nas suas naturezas. Estava namorando um rapaz, jovem como ela, e o pintou como um Adonis moderno para o avô, deixando no coração do velho um arranhadinho de ciúmes, que se sentia feliz ao mesmo tempo, por ver a felicidade da filha de seu filho. Contava também dos sambas que ouvia ultimamente e de como gostava da alegria e tristeza simultâneas nessas músicas. Lia alguma notícia especial dos jornais que trazia consigo. Falava dos livros que lhe enfeitiçavam.

No fim das suas horas abraçava esse senhor com o afeto mais profundo que um homem pode ter pelo outro, e saia chorando. E se olhasse para trás veria que os olhos do avô também choravam. A alegria da juventude então se cansava do asilo em que ficara todo esse tempo e corria leve atrás dos cabelos encaracolados da jovem, que o vento insistia em balançar. O homem então sentia sua antiga companheira lhe chegar fria e rabugenta. E tudo voltava a ficar velho, feio, desagradável...

Ele sabia que só depois de duas semanas é que ela voltaria para vê-lo. O rapaz que lhe ajudava e era responsável pelo seu bem estar sofria dois dias com a amargura da saudade do velho. Depois o velho se rendia a doçura da mesma saudade e contava ao jovem as maravilhas que a moça trazia. O fazia de forma tão verdadeira que o moço se apaixonara. Não pela neta que visitava o velho, porque essa nunca tinha visto, sua folga era nos dias da visita. Apaixonara-se pela neta pintada em cores tão vivas.

Passaram-se alguns meses. Noventa e um ele completaria em alguns dias. Era muito tempo pra se viver, não tinha necessidade de todos esses dias. A metade já lhe satisfaria, mas os dias insistiram em vir, um após o outro, como se fossem os elos de uma corrente que o prendia cada vez mais.

A neta que antes vinha com uma freqüência ordenada começou a falhar. Talvez os trabalhos da faculdade. Talvez os amores de um novo namorado. Talvez a diversão com os novos amigos. Tudo era boas desculpas para justificar a ausência em dia que era esperada com tanta paixão. A única coisa que ele não perdoaria era que ela visitasse outro velho. Esse posto já era seu e só seu.

O rapaz que lhe cuidara não cuida mais. Mudou-se de cidade para se casar com uma moça bonita. Jamais esquecerá a paixão pela neta do seu velho. Mas essa moça de agora era de verdade e tinha uns beijos deliciosos. O velho desejou boa sorte. Um abraço. Um adeus. O moço foi embora e chorou, escondido no quarto, as saudades do avô postiço com suas histórias de uma neta fantástica. O velho também sentiu falta do amigo, mas na sua idade já sabia que tudo se vai um dia.

A neta se fazia mais demorada, só que dessa vez a esperança não acabava no homem. Feito criança esperando pelo aniversário em que teria como presente a alegre visita da menina. Essa espera lhe fazia lembrar a mãe, a casa com piso de madeira, os oito anos, o cheiro de baunilha que recendia pela casa em dia de festa. Mas tudo era vago e antigo e chorava por dentro sua insuficiência.

O dia veio. A neta não. Não tem o que comemorar. Recolhe-se em seu quarto e escreve em um papel coisas que a memória insiste em trazer dos seus antigos guardados.

No outro dia não se levanta. A neta é avisada da morte e sofre e chora e se castiga pelo esquecimento. Se lembra da musica que o velho de olhos negros sempre cantava em seus ouvidos em dia de visita:

"A saudade é dor pungente, morena. A saudade mata a gente, morena."

quarta-feira, 2 de maio de 2007

EGO


E se eu não quiser falar com Deus e fugir da luz e me enterrar na escuridão que há dentro de mim... E se nesse escuro eu caminhar noites e mais noites, aos tropeços e arranhões, na busca do que não sei. Não mais haverá dias.

As manhãs são felizes demais para que eu possa suportá-las e me escondo na noite porque ela me protege, todos são pardos, mas na noite que existe em mim não existem outros gatos.

Existem sim... Quem está aqui? De forma obscura consigo identificar. Sou eu quem está aqui. Estou em partes, dividido em diferentes pessoas, alguns outros eus meus. Por isso me perco por caminhos ininteligíveis. Não sei quem devo ser, se é que devo algo e nem qual de mim posso mostrar ao mundo. Não sei quais vontades ter.

Quero fingir para todos minhas as minhas caras numa só e me afastar do mundo, me tornar impessoal, impassível, sem gosto... E quando finalmente eu e os meus outros estivermos sozinhos, vou saber o que não queria.

Eu sou Deus e por isso mesmo dono de mim e dono do meu caminho. Se erro pouco tem importância, afinal, não vim à vida para vitórias. É na dor da derrota que se descobre nossa verdadeira função no jogo. Mas é tudo inútil. Existe uma verdade que me impede de levar meus pensamentos para um final menos doloroso: Deus não erra.
Ofertas e promoções de notebook, camera digital, iPod, computadores, etc