Dona Nilza sempre soltava os cachorros no final da tarde. Sentido literal, nada de histerias escandalosas e formidavelmente despeitadas. Não que ela não fosse dada a esses comportamentos tempestuosos. Uma mulher de verdade sempre carrega a tempestade consigo mesma. Confiante.
Os cachorros em questão são duas cachorras. Cachorrinhas. Sandy, uma vira-latas de dez, onze ou doze anos, nunca se recordam ao certo quando a cachorra nasceu, ou apareceu. Sueli, a filhotinha, fruto de um amor escapado de Sandy, concebida num desses finais de tarde. Maternidade tardia, diriam alguns, mas isso não é considerado quando falamos de uma vira-latas, até certo ponto simpática, que não visitou o veterinário uma vez sequer em sua existência canina, que se me permitem os cauculos, já passa bem dos setenta anos.
Sueli é a reencarnação do mal. Isso digo porque não sou desses que se apegam à falta de personalidade do cão para tentar encontrar reflexos de sua própria naquele espelho quadrúpede. É que não gosto de animais. Não os quero extintos, longe disso defensores, não pensem isso de mim, mas nunca consegui entender o porquê de se criar um cachorro. Nem ao menos caço. Sueli não seria uma boa caçadora. Talvez surpreenda. É branquinha, peludinha, com algumas manchinhas pretas pelo corpo. Muito fofa. A fofura é um adjetivo bastante maleável, pode indicar uma espécie de delicadeza fresca e feminina, até mesmo infantil, ou não. É por isso que gosto bastante da ironia. Sueli é fofa. Impressionantemente destrutiva, a julgar pelo seu tamanho e sua fofura. Unhas e dentes para quem os tem.
Aconteceu na terça-feira, soltas pela dona correram na direção da praça que ficava logo na frente da casa. Um mundo de grama, arvores, bancos, jardins, infinitamente maravilhoso com seus cinquenta metros quadrados. Histeria. Corriam sem parar, se mordiam, se lambiam, se mijavam. Dona Nilza sempre esquecia as cachorras ali por uns vinte minutos, o suficiente para se satisfazerem de liberdade.
O que aconteceu também foi que Sandy voltou assim que ouviu o grito indelicado da dona. Mas voltou sozinha. Dona Nilza partiu numa busca imediata pelo quarteirão. Gritou. Sandy foi junto. Latiu.
Nada.
Sandy sofreu a tristeza da perda e sofrerá a tristeza de ser uma velha solitária. Dona Nilza amaldiçoou a família do raptor até a sua décima terceira geração. Sueli provavelmente vai ser mimada pelos novos donos encantados com sua fofura de filhote.Mudarão seu nome. Talvez Fofinha, Tetéia ou Honey.
Que fique aqui registrado meu desconsolo. Quem escolheu esse nome, Sueli, fui eu.