domingo, 25 de novembro de 2007

Viril.



Eu não me lembro de minha mãe. – Esse pensamento só passou pela cabeça de João quando pela primeira vez ele calçou um dos sapatos de salto alto que a mãe lhe havia deixado como herança. Aquele amontoado de vestidos, jóias e sapatos não era sua herança de verdade, mas ele adoraria se tivesse sido.
Passava as tardes sozinho em casa enquanto o pai trabalhava. Não conversava muito com esse pai que guardava uma espécie de rancor por ter que cuidar de um filho que tirou de sua vida a mulher que amou muito. Nunca mais encontrou outra. Não outra que amasse porque mulheres, teve aos montes. Todas pagas. Não queria ter sentimentos por nenhuma. Aquele filho-estorvo nem sequer sabia disso. Menino esquisito.
Joãozinho era calado. Aprendeu com o pai a ser assim. Em casa quase não existiam diálogos. A vida seguia triste até o dia em que descobriu os sapatos. Ficaram um pouco largos, mas gostou de usá-los e ficava caminhando pela casa o tempo todo em que ficava sozinho. Era como se sentisse sua mãe lhe acariciando. O tempo passou a ser menos triste e o menino que tinha quatorze anos foi crescendo menos triste.
Os pés cresceram, os sapatos ficaram bons. Agora também já usava os vestidos. E dançava com eles. E se deixava inebriar pelo perfume de roupa guardada. Tudo ali era sua mãe. Aos poucos tornava-se um homem, que muitos diriam bonito. Tinha um sorriso tímido, quase feminino. Era dessas beleza de quase anjo, os cabelos compridos, louros, o rosto jovem, fresco.
Os pés já não cabiam mais nos sapatos, ficaram grandes demais. Foi nessa época que o pai morreu. Agora sentia-se menos sozinho.
Um dia se cansou dos vestidos.
Saiu pra rua e pegou a primeira prostituta que lhe ofereceu os serviços. Perdeu sua virgindade. Saiu dali realizado. Cortou os cabelos. As roupas do pai e da mãe doou a quem precisava. Não havia mais função em guarda-las. Terminou os estudos, começou a trabalhar, namorou bastante, freqüentou festas. A vida segue como deve.
Hoje é domingo e enquanto volta da padaria com o pão quentinho não faz muita questão de se lembrar de tudo isso. Está feliz. A mulher espera em casa preparando o café. O filho ainda estará dormindo, e quando chevar vai acordá-lo com carinho. Hoje é dia de almoço mais caprichado. Hoje é dia de futebol na televisão.

domingo, 28 de outubro de 2007

Frango caipira em porcelana de Limoges.


O cheiro do frango vazava pelas janelas da cozinha. No quintal, os amigos reunidos bebiam uma cerveja enquanto o outro amigo cozinhava aquele frango. Era caprichoso. Todos ali depositavam esperanças nele. O pai, a mãe, a irmã, o namorado da irmã, a própria namorada. Os amigos não têm voz. Não devem falar se ficou ruim. Apenas que ficou muito bom. A verdade é que nenhum deles faz isso, mas são amigos, fazer o que? Foram escolhidos. A namorada também foi escolhida. Todos gostavam dele e o mais importante, ele também de todos. E mais importante ainda: a namorada era bonita. E muito mais importante ainda: batia nela. O cunhado, irmão da namorada não era boa gente. Ele nunca gostou dele. Um gordinho bicha que não valia nada. A família dela ele respeitava. O irmão não. Bateu nele. Na verdade mandou matar. Ela coitada não sabia disso. Chorou desesperadamente verdadeira. A morte não deu certo. O gordinho ficou aleijado. Anda de cadeira de rodas. O tiro foi na cabeça. Ficou bobo. Não sabe conversar, não sabe andar, não sabe fazer mais nada. Ele sabia fazer algumas coisas antigamente. Ele nem sequer se lembra que existe um cunhado que o odeia e sorri toda vez que aquele rapaz simpático lhe chega. A verdade é que ele sorri pra todo mundo...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Conversando na mesa do bar.


_ Conheci uma morena rústica hoje.
_ Rústica? Rústica porque? Ela é mal acabada?
_ Não cara...
_ É que pra mim rústico é isso. Mal acabado. Sabe? Moveis de madeira semi-bruta, sem polimentos, uma coisa meio sem sofisticação?
_ Não! Já falei que não é isso!
_ Então o que é?
_ Ela era rústica, uai! Meio selvagem...
_ Conheceu como?
_ Na verdade não a conheci não.
_ Mas você falou que havia conhecido! Garçom! Outra cerveja, por favor.
_ Eu estava sentado em um banco em frente à nossa sala, um pouco antes da aula de Semântica...
_ E?
_ E ela passou.
_ Passou como?
_ Andando oras!
_ E ela é bonita ou mal acabada?
_ Ela é linda! Já falei que minha morena rústica não tem nada a ver com seus moveis velhos.
_ Sua morena?
_ É! Minha!
_ E como é essa “sua” morena?
_ Sorriso lindo, cabelos pretos, muito longos. Ela estava com eles trançados...
_ E os peitos?
_ Ela os tem!
_ Que bom! Você sabia que o professor de Semântica tem uma certa queda por seus alunos?
_ E ela tinha uma tatuagem nas costas... Alunos?
_ É alunos. Não alunas. Tatuada? Adoro mulheres tatuadas. O que era?
_ O que?
_ O desenho da tatuagem?
_ O Che.
_ Guevara?
_ Sim. Você já ficou com alguma mulher tatuada?
_ Não... Quer comer algo? Estou com fome.
_ Peça uma porção de fritas.
_ Pode ser... Que mau gosto tatuar o Che. Ela é petista?
_ Não sei, mas tem cara. E tem cara também de quem ouve Chico.
_ Todo mundo ouve Chico na faculdade, esqueceu que é pré requisito pra ser um verdadeiro alternativo?
_ ...
_ E aí?
_ O que?
_ Sua morena! Morreu?
_ Não sei. Acho que não. Ela não tem cara de quem morre... Deve estar ouvindo Chico, fumando um cigarro, tomando uma cerveja.
_ Eu também fumo!
_ Você não é morena.
_ E muito menos rústica.
_ Idiota!
_ Garçom!
_ Quem te falou que o professor é gay?
_ Não falaram que ele é gay. Disseram apenas que ele tem uma certa queda pelos alunos.
_ Alunos homens! Então é gay!
_ Sim!
_ Quem te falou?
_ O pessoal do terceiro ano. Você está apaixonado pela morena?
_ Acho que sim.
_ Será que ela tem nome?
_ Não sei não. Acho que é Letícia.
_ Porque você acha isso?
_ Não sei.
_ Será que vai vê-la novamente?
_ Talvez. É só esperar no mesmo lugar... Qualquer dia ela passa de novo.
_ Você está mesmo apaixonado... Que bizarro!
_ E qual o problema?
_ Não é da minha conta se houver algum.
_ Não posso estar apaixonado?
_ Pode.
_ E outra, é só por hoje!
_ ...
_ Então?
_ Será que amanhã vai conseguir não estar?
_ Claro que vou, e porque não conseguiria?
_ É que vicia...

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Cândido.


Domingo é o sétimo dia. É o descanso de quem trabalhou a semana toda e precisa desse fôlego pra voltar a trabalhar a semana toda. É também o dia do tédio na televisão, das comidas hipercalóricas em cima da mesa, de visitas à família, dia de missa para alguns... Aqui nessa casa nada disso acontece. Domingo é o dia da limpeza, o dia da lavagem, e toda a roupa branca se encontra estendida no varal e balança com um vento forte e quente. A roupa não é pouca, mas logo estará toda seca. São seis uniformes brancos de um enfermeiro que dispõe de tempo para lava-los apenas aos domingos. Um para cada dia estendido um ao lado do outro, como se fosse uma semana de verdade. Uma semana iluminada que o sol forte refulge no branco da roupa bem cuidada, perfumada de lavanda, que balança. Para alguns seria apenas uma semana sem graça, sem cores, apática. Seis calças, seis camisas, seis cuecas, seis pares de meias, seis jalecos.
O domingo não é um dia branco. Zildo está cansado de toda essa alvura. Teve que botar muita força nos braços pra deixar a roupa livre de seus encardidos. Exigência do hospital. Agora está deitado, livre de qualquer roupa que lhe lembra o branco do hospital. Dorme nu. O vento quente nina seu corpo franzino. O sono é pesado, a respiração lenta e pode se ver um fio de suor lhe escorregando pelas costas. Em sonho, Zildo caminha por uma grande cidade branca, toda azulejada, esterilizada, desinfetada que cheira a álcool e pinho. Poderia ser perfumada com lavanda, mas esse é um perfume muito alegre, colorido. Caminha por muito tempo por essas ruas brancas por onde caminham muitas gentes brancas. Zildo já está cansado de andar. Para diante de um grande supermercado branco. Prateleiras brancas cheias de caixas brancas de um único produto exposto em suas enormes prateleiras enfileiradas com ordem e higiene. Procura em vão. Todas elas suportam o peso de um mesmo produto. Sabão em pó. Toneladas de sabão todo azul, como sabe Zildo, mas não se pode ver esse azul. As caixas são todas muito brancas e não permitem que outra cor apareça de seu interior. Ele quer outra coisa, não quer mais o branco. Sabe que tem azul ali dentro, mas esse azul só lhe servira pra deixar suas roupas mais brancas. Zildo se desespera e grita e corre e empurra as prateleiras derrubando-as. Elas, coitadas, caem como dominós enfileirados. As pessoas brancas o olham com ar de reprovação. Depois desprezo. A raiva chega logo em seguida. Todos começam a lhe apontar os dedos e gritam seu nome e lhe xingam, e são todos ameaças.
Zildo corre, sai do supermercado e corre, corre muito, desesperado. Quando olha para trás a cidade é um grande amontoado branco de espuma de sabão... Tudo está se desfazendo. Seus pés não encontram mais firmeza e se sente afundando na espuma perfumada. Em segundos começa a se afogar. A espuma lhe entra pela boca e nariz. Os olhos ardem muito. Já não escuta mais nada.
Zildo acorda suado. Seus sonhos lhe deprimem. Ele queria sonhar com pornografias, sonhar com a sujeira, sonhar com o preto. Infelizmente não pode controlar essa sua vontade. Sabe que os pesadelos lhe deixam aliviado quando acorda e não sabe que se o sonho fosse bom, a frustração viria rápida e certeira. Filosofias que não passam pela cabeça de Zildo. Levanta-se e caminha ainda pelado para o quintal de sua casa pequena. Precisa recolher a roupa e passa-la a ferro. Quando mira o varal suas roupas estão todas sujas. Um vento forte deve ter alevantado aquela poeira toda. Estão todas avermelhadas. Zildo sorri. Queria que sua vida tivesse algumas daquelas nuances mais quentes, isso lhe lembrava o sangue que lhe corria nas veias e não aquele que ajudava a estancar. O vermelho do sexo porque em sua cabeça o sexo era vermelho. Um suspiro resignado lhe escapa. Recolhe as roupas coloca tudo dentro do tanque, abre a torneira. Súbito lembra-se que o sabão acabou. Caminha até seu quarto, veste-se com uma roupa que não é branca e sai para o supermercado. Mas é domingo...

domingo, 30 de setembro de 2007

Descontrole.




O dia extremamente quente de um sol branco demais talvez deixasse os seres desnorteados, fora de sua rota usual. Talvez...
O caminhão preto anda na estrada com toda a velocidade possível. A carga inflamável da um toque de mais calor nesse dia já bastante quente. A estrada é quase deserta. Os motoristas não querem se arriscar nesse dia quase aziago. O caminhão preto vai sozinho, reto.
Um jovem saiu de casa e está nessa mesma estrada. Vai pra casa dos pais da namorada numa cidade vizinha. Conhecer a família da moça que vai ser sua futura noiva. Vai frustrado. É gay, não suporta a feminilidade da namoradinha perfeita cozinheira. Ela até borda ponto-cruz. Ele prefere imaginar o porteiro do prédio onde mora só num apartamento, que ele acredita que sorri diferente quando o vê passando.
O carro se aproxima do caminhão preto com placa de carga inflamável. Seria um cruzamento normal. Dois carros que passa um pelo outro numa estrada quase deserta num dia em que o calor assusta até mesmo as cobras. Nada é normal.
O caminhão se joga conta o carro. A carga explode e tudo vira uma fogueira de São João. O caminhoneiro também era frustrado. Sonhava em ser floricultor. Sempre teve uma alma delicada. Cansou-se da grossura de ser caminhoneiro. Resolveu acabar com a própria vida, mas não queria ir só.
Os dois carros ardem e os dois corpos também. O calor é insuportável.

sábado, 18 de agosto de 2007

Descanso.



Os antigos sempre carregaram suas superstições consigo como se fossem uma riqueza que devessem guardar. Sempre respeitaram e seguiram suas próprias crenças. Tem uma que é bem interessante, da qual muitas vovós viam-se no dever de falar aos seus netos. Dia 24 de agosto, dia de São Bartolomeu, o dia mais aziago do ano, o dia em que o Demo sai do inferno e vem aprontar das suas pela terra. É um dia em que a maldade é mais maldade. Todos temem esse dia. Principalmente aqueles que vivem em cidades pequenas, onde as superstições têm mais valor que a ciência. Todos os anos são narradas catástrofes acontecidas nesse dia. Teve uma vez, porém que não aconteceu nada disso.
O Diabo estava cansado do calor do inferno com suas chamas eternas. A fumaça não dava trégua. O cheiro da carne apodrecendo e cozinhando. Os gritos de um sofrimento que nunca passaria. Eram os pecadores sendo redimidos de seus feitos considerados não ortodoxos. Uma eternidade toda assim. Até o Diabo se cansou e se decidiu que naquele dia não sairia fazendo nada. Queria sentar-se e ficar sentado. E se preparou para isso.
Passou a madrugada toda escolhendo uma aparência que lhe agradasse e que não causasse espanto demais ou admiração demais. Tornou-se um jovem de 18 anos, bonito, com seus olhos e cabelos pretos e ainda escolheu um belo sorriso. A manhã se foi embora enquanto se vestia como mortal. Calça jeans, camiseta, boné e um par de tênis confortáveis. Ficou se admirando no espelho e até achando graça do que os velhos sempre disseram. O Diabo pode estar sob qualquer forma. Era verdade. Se achava bonito daquela maneira.
Escolheu para passar o dia uma cidade pequenininha, dessas de interior, com praça e igreja, nas quais todos os moradores passeiam aos domingos. Não era domingo mas ele queria a praça mesmo assim. Os moradores não estariam na lá. Além de não ser domingo, aquele era um dia em que as crendices seguravam as pessoas em casa. As mães não deixavam seus filhos irem pra fora de casa. Todos se trancavam. Só saíam aqueles que precisavam, que tinham seus trabalhos e obrigações fora de casa. Uma vez um padre prefeito quis colocar o dia como feriado para evitar ter que sair para trabalhar. Mas feriado pro Capeta era uma coisa inconcebível.
Distraído com os preparativos, o dia quase passou sem que ele percebesse. A preocupação em não ser percebido nunca fora tão grande. Poderia ter escolhido uma grande cidade, com muitas pessoas e movimentos. Desistiu. O inferno estava cheio daquilo tudo. Queria descanso do caos.
Chegou caminhando na praça quase no fim da tarde. O sol já tava mais brando, o vento fresco, alguns pássaros desavisados da sua presença cantavam. Escolheu um banco qualquer e sentou-se. A praça estava quase vazia. Estaria se não fosse um sorveteiro ateu, e uma moça que lia seu livro, tranqüilamente, esquecida. A jovem bonita em seus 17 anos admirou-se da presença daquele rapaz, sentado quase perto dela. O mais certo é que o tivesse visto antes, a cidade era pequena demais pra não se conhecerem. O interesse pela leitura foi-se embora. Agora apenas observava o rapaz que não fazia idéia de quem fosse, sabia apenas que era bonito, não como os rapazes da televisão. Apenas ela achara ele bonito, e isso lhe valia. Ficou imaginando quem era o rapaz, se era da cidade, novo morador ou apenas um visitante. Ficou imaginando um namoro. O desespero do amor quase lhe chegou ao coração, mas ficou com a tranqüilidade de quem fica de longe, apenas olhando.
O diabo percebeu a moça logo que chegou, mas não deu importância. Queria sentar-se e ficar no sol, no vento, tranqüilo. Depois de um tempo passou a observa-la. Adivinhou o interesse dela por ele. Deu uma olhada de lado que fez a moça ficar sem graça e tentar disfarçar abrindo, desajeitada, o livro que havia sido fechado. Admirou-se de sua beleza juvenil, seus cabelos louros, o corpo firme e macio, a pele branca. Começou a pensar em tudo que faria para seduzir aquela mocinha bonita. Teria toda a sensualidade que quisesse. Depois, insatisfeito, acenderia um cigarro como os mortais enquanto ela cochilasse em seu braço. Um pouco depois sumiria dali, deixando uma linda mulher apaixonada, e perdida. Naquela cidade ainda se perdiam as mulheres.
Não quis nada daquilo. Lembrou-se de quantas mulheres já havia seduzido. Lembrou-se da fumaça do inferno e desistiu do sexo e do cigarro. Queria algo novo, mas o que pode ser novo pra quem é quase tão antigo quanto a própria existência. A moça continua a lhe observar, ele já não se importa mais com ela. Caminha até o sorveteiro e fica distraído olhando à sua volta.
_ O que o rapaz vai querer?
_ Um sorvete. De baunilha.
Volta, senta-se no mesmo banco de antes e observa o por do sol. A vida foi doce por uma única vez.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

No Nunca.


De repente todos os meninos daquela terra tornaram-se adultos. Um feitiço que ninguém conseguia anular. A convenção dos bruxos foi quem organizou o golpe. Eles eram inatingíveis. E todas as vidas mudaram.

As crianças que um dia antes brincavam com as outras crianças ou fantasiavam com os amores da televisão já não o fazem. Transformaram-se em pais e mães de famílias, com contas pra pagar, impostos, dores no fígado e tudo o mais que faz um adulto, adulto.

A fantasia foi embora daquela terra. Levou junto algumas cores alegres. Deixou tudo cinza, marrom e vermelho. Não um vermelho de amor... Era sangue. A repressão veio. Todos passaram a ser presos por quererem brincar. Toda forma de diversão era feita no underground. Tudo escondido. Tudo com muito medo. E de repente todos eram velhos. Os que eram velhos agora não são nada.

O que mais entristece é que tudo ficará normal...

Todos vão se acostumar. Tudo será real.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Tempos.


Eu nunca soube de verdade quem eu era, ou quem deveria ser. Nunca me ensinaram.

Na casa antiga, dos tempos infantis, eu era apenas o neto de minha avó velha. Pais eu tive, isso foi contado por minha avó, mas não os conheci. Vivíamos quase sozinhos. Eu tinha um gato, Anastácio, que era mais de minha avó que meu. Só nós três pela casa quase sempre silenciosa. Às vezes vovó ouvia músicas velhas que eu gostava de ouvir também. Mas a música era pouca.

Os sons que me acompanhavam eram os da vida acontecendo. O chiado do chuveiro elétrico que demorava a esquentar a água. O barulho dos bolos de cenoura. O almoço sendo preparado. O horror das visitas noturnas dos morcegos à grande sete-copas do quintal. Era uma vida solitária vista de fora. Mas por dentro tudo é diferente.

Eu tinha amigos. Vários além de Anastácio. Jesualdo era o mais presente em casa, velho, porém mais jovem que minha avó. Conversávamos os três, minha avó bebendo café com a visita, e eu uma laranjada que trazia a cor do sol nos dias de verão. A chuva caía. O quintal era pura lama nesses dias.

Um dia vovó sentiu falta de Jesualdo. Perguntou por ele. Lamentei:

_Morreu tem duas semanas. Ataque do coração.

Depois veio João Getúlio, Eunório, Casemiro... Todos os que a minha imaginação podia inventar e que a paciência da velha podia tolerar.

Um dia larguei os amigos imaginários. Nunca mais nos vimos. Não teve brigas ou discussões, só a vida de verdade que os deixou de lado. A escola, os amigos, os domingos, o futebol... Vovó cada vez mais velha, mais criança, e eu tentando me tornar um homem.

O gato há tempos que não existia. Agora era um cachorro. Anastácio. A velhinha gostava do nome. Ou simplesmente não conseguia se lembrar do outro que eu tinha dado: Carlos. Eu gostava de poesia e o primeiro ano da faculdade de Letras me fez escolher esse nome. No segundo vovó morreu. Vieram alguns parentes. Um filho que se ausentara da mãe e a chorava agora. Todos tristes e solidários. Resolvi seguir sozinho com Anastácio. Estudava de noite, trabalhava de dia. Uma vida normalmente triste.

A namorada veio no terceiro ano. Ia ser médica. Toda prática foi mudando minha vida. Arrumou a casa, comprou ração pro cachorro... O casamento veio depois. Três anos mais tarde, eu formado, lecionando, ela na residência: cardiocirurgia.

Tudo posso ver hoje. Não podia antes. A gente não vê o que está vivendo, e é bom que seja assim.

Lúcia dorme agora. Está grávida de cinco meses. Eu acordado não sei o que pensar. Vou ser pai. Um pai que não sabe como se deve ser. Mas vou aprender com o tempo. Vou trocar fraldas e ficar sem dormir. Vou me preocupar com os tombos. Vou me orgulhar da sua masculinidade sendo mostrada nas minhas rodas de amigos. Vou ter uma nora. Vou ter cabelos brancos. Vou ter netos. Vou ser velho. Será que o Eunório morreu???

_ Felipe?

_ Oi.

_ Vem deitar, vem!

Às vezes a vida me espanta.

sábado, 16 de junho de 2007

Filho.


Um cheiro quente de baunilha recendia por toda a casa. Era o bolo que a mãe assava quase todas as manhãs. O menino já estava acordado, mas esperava na cama, o que não se sabe, apenas ficava ali deitado admirando os fantásticos desenhos que a luz do sol deixava nas paredes, quando passava pela cortina rendada de branco.

A vida de criança é toda assim, desenhada, rebuscada, com detalhes de rococó barroco, mas sem cores, essas ainda não foram decididas, tudo é branco e luminoso.

As batidas saem da porta de madeira pintada de azul muito calado.

_ Meu filho. Vem. O café está quase pronto.

_ Já vou mãe. Mas não foi de imediato. Levantou-se. Não se decidia ir ainda.

No quarto sua figurinha se encontra com o espelho, se olha e seu olhar se mede do alto da sua cabeça de cinco anos. O pijama, colorido de xadrez, lhe deixa com um ar desprotegido. Mas é só ilusão. Nesta fortaleza ele não corre riscos, é o rei, cuidado por dois fiéis guardiões.

Um é o forte cavaleiro louro, matador de dragões, que sai todo dia bem cedo em seu cavalo branco ano noventa e quatro para não enfrentar o engarrafamento no caminho do escritório de contabilidade onde trabalha. A outra é a linda feiticeira que tem o magnífico poder de deixar o mundo inteiro com cheiro de baunilha, canela, chocolate e até de frango assado.

O menino está bem guardado e sabe disso. Dono dessa consciência de rei abre a porta do quarto e sai correndo pela casa. Chega na cozinha e olha meio desconfiado para a mãe, com aquela desconfiança que só se tem quando ainda não se perdeu a inocência de seus cinco anos.

_ Oi!

_ Olá, meu filho! Bom dia! Sente-se. Vamos comer, quer um pedaço de bolo?

_ Quero... Mãe...

_ O que?

_ Eu tive um sonho.

_ Ah é? Então me conte.

_ Eu sonhei que era grande e era triste e vocês não estavam mais comigo. Tudo cinza. Ser sozinho é triste mamãe. Eu não gosto disso.

A mãe deixou escapar um sorriso constrangido, meio de lado. Ficou olhando o filho que comia o bolo satisfeito. Lembrou-se de quando ele era um bebê e percebeu como o tempo passou depressa. De repente a tristeza de saber que não ia estar com ele eternamente.

_ É apenas um sonho meu filho. Logo você se esquece disso tudo.

O menino da uma risada gostosa ao ouvir as palavras da mãe, ele não ficou cinza, ainda é branco, com a boca cheia de bolo e o copo com leite e chocolate sobre a mesa.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Como?


_ Como? Tem alguma coisa errada... O doutor está enganado.

_ Sinto muito senhor, mas é isso mesmo que ouviu. Não pudemos fazer nada. Seu filho morreu. Seja forte. O médico diz isso e sai fechando a porta do quarto. A mulher ainda está deitada, dormindo, exausta. O parto foi complicado, mas ela tem o semblante alegre, satisfeito e dorme profundamente. Agora o marido chora agachado em um canto do quarto, desesperado. O filho era o que eles mais queriam. Foram meses felicíssimos, planos maravilhosos e um amor crescente.

Tudo se acabou, o que ele espera é a mulher acordar para dar a noticia. Nessa espera imagina como ela ainda é feliz... E que distancia essa que separa os dois. Um abismo de tristeza aonde ela também vai cair assim que acordar.

Ela está tão bonita dormindo... Ele chora desesperado. A dor dilacera as suas entranhas. E ele espera.

_ Tomara que ela nunca acorde.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Tombo.


A porta se abriu e Kátia viu o noivo transando com o encanador do prédio na sala do apartamento recém decorada por ela para os dois morarem após o casamento. Fechou a porta, tranqüila, e sem ser percebida ficou olhando, parada.
O sexo era selvagem. Ela também foi. Matou os dois a facadas. Pouco depois ligou pra polícia e se entregou, logo chegariam.
A ansiedade fez o tempo se demorar. Ela se cansou e se atirou da varanda do décimo quarto andar. Caiu na calçada duplamente condenada ao inferno: homicida e suicida. Mas nem isso lhe sobrou.
Ela era uma estudante de filosofia, atéia, que conhecera o namorado tatuado na faculdade. Tudo o que fazia sempre lhe pareceu livre, moderno e civilizado. É uma pena que às vezes as aparências enganem.

domingo, 20 de maio de 2007

Intimidades


O caderno com algumas folhas escritas deixado sobre a mesa desorganizada. Um lápis com a ponta quebrada ao lado. Jacinta saíra atrás de algum apontador. Engraçado, nunca se habituara a escrever com canetas. Apenas o lápis. Talvez algum resquício da infância dentro de sua cabeça.
Agora era a mulher madura em quem o vestido vermelho caía muito bem. Era de bom tecido, tinha um bom corte e o que mais importava: o marido gostava que ela usasse esse vestido.
O que o marido nunca revelara era o porque de tanto gostar desse vestido, mas agora não será mais segredo. O tesão que se despertava nele vendo ela tão bonita era que fazia esse gosto. E hoje, vendo ela meio abaixada, a bunda meio empinada, o vestido vermelho...
O sexo foi inevitável. Ali mesmo encostados no armário onde ela procurava o apontador na posição fatídica. O gozo do homem e da mulher de quarenta anos, sozinhos, livres. Não eram apaixonados, se amavam, mas de forma branda e constante. Nada de demonstrações de carinho em público ou declarações exageradas de amor. Alguns até diziam que eles não se gostavam. Ninguém sabia que era nessas horas que eles mais eram felizes e mais cúmplices um do outro.
O apontador já não interessa mais. O diário esquecido em cima da mesa esperando que essa aventura lhe chegue nas páginas brancas que ainda restam. Mas não agora.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Um.


A manhã já ia adiantada quando comecei a despertar. O dia estava frio e deixava o corpo com uma vontade de ficar na cama, junto aos cobertores que aqueciam todo o meu mundo. Mas eu tinha que levantar, havia coisas a fazer.

As janelas do apartamento abertas deixavam que a luz inundar todos os lugares. Mas era uma luz baça... O dia estava nublado. Eu, sentado numa cadeira terminava de acordar enquanto a água do café não fervia. O que era mesmo que eu tinha que fazer? Não me lembrava, mas sempre havia algo por fazer e isso graças à minha vida desorganizada. Tomei o café puro, não tinha o que comer e me decidi tomar um banho. Descobri a resistência do chuveiro elétrico queimada, o que me fez tomar um banho quase gelado que me fazia dar pulos na esperança de esquentar um pouco o corpo. Banho frio era saudável, era o que diziam, mas isso não me consolava muito naquela hora. A toalha eu esquecera no quarto, o que me fez sair correndo do banheiro. É que mesmo morando sozinho sentia vergonha de sair nu do banheiro. A janela do quarto escancarada deixava o vento frio do começo do inverno entrar e gelar ainda mais meu corpo molhado. Enxugo-me às pressas e me deito denovo, a fim de me esquentar um pouco. Acabo adormecendo...

Já é hora do almoço e perdi toda a manhã. Penso isso ainda deitado. Levanto-me novamente, me visto e tento buscar coragem para sair de casa. Escovo os dentes pensando na fome que sinto e quando termino essa tarefa relembro que a torneira da pia está com vazamento. Uma goteira interminável, mal sentida nas contas do mês graças ao advento do poço artesiano do condomínio.

Saio de casa, tranco a porta, desço pelo elevador os oito andares que me separam do chão e me encontro com os escolares infantis, prontos para irem em direção aos estudos vespertinos. Eles são eufóricos e barulhentos. A verdade é que eu não gosto muito de crianças entusiasmadas. Prefiro a melancolia da velhice, apesar de estar mais perto de criança do que de velho com meus vinte e dois anos.

Caminho até a padaria da esquina. Compro logo o que preciso sem me demorar muito. Fico constrangido na padaria. A balconista sempre me olha de maneira desconcertante, o que me leva a ter algum recalque de misoginia passageira. Talvez a minha virgindade me faça mais tímido, ou talvez seja virgem ainda por causa da timidez, não sei dizer, o que sei é que a balconista suada não me desperta apetites.

De volta à minha casa. Como pão com um apresuntado vagabundo e bebo um iogurte de frutas mais vagabundo ainda pra tentar fazer tudo descer mais facilmente. Resolvo fumar meu primeiro cigarro do dia. Eu sempre falo que o pior cigarro do dia é o primeiro. Mas é inevitável ou tem como ir direto para o segundo? A pressão cai um pouco e eu fico meio entorpecido. Na verdade é preguiça mesmo. Durmo.

Acordo com a campainha tocando. É um colega meu da faculdade que por uma coincidência infeliz é também meu vizinho. Ele me indaga se estou bem, com algum problema, por causa das faltas freqüentes. Tento alguma explicação que não me deixe com cara de vagabundo e ele se vai. Já são seis da tarde e o dia me escapou pelas mãos.

A noite vai chegando e transformando tudo o que antes era outra coisa. Alguém me disse que essa é uma hora perigosa, mas não me lembro mais quem foi. Coloco um disco pra tocar e me distraio com as musicas, com os meus cigarros, que agora já não me dão preguiça. Resolvo beber vodcka sozinho. E resolvo cantar também sozinho. Quando a noite se completa eu saio sozinho atrás de algo que me distraia um pouco os pensamentos. Sei que vou ficar sozinho em algum bar, bebendo e observando os andantes. Todos risos e alegrias e eu comigo em meu mundo.

O lugar é conhecido, sou freqüentador assíduo. A única pessoa que me fala é o dono do bar, mas nosso dialogo é sempre objetivo. Peço uma cerveja e recebo um pois não me indicando que serei atendido. Hoje tem algo diferente aqui, uma presença nova. Me sinto observado por outro como eu. Pouco depois descubro que é outra. Sozinha como eu, bebendo, e pensando em algo que só ela mesma pode saber. Nos contemplamos por muito tempo.

O bar já vai fechar. Pago minha conta e quando percebo ela já não está mais ali. Uma certa mágoa me bate por não ter conversado com ela, mas passa instantaneamente. Estou acostumado a não ter pessoas para mim. Saio do bar e caminhando busco o caminho de casa nessa noite bastante fria. Na esquina encontro-me com ela, que me olha, mas não fala nada. Eu também olho e como ela também não falo nada.

Ela se aproxima, segura a minha mão e me puxa para um destino que desconheço. Logo chegamos na sua casa. Nenhuma palavra é dita. O silêncio nos une cada vez mais. Agora somos amigos, mas não são horas para conversar com amigos. Ela me leva ao seu quarto perfumado e se despe dos vários agasalhos também perfumados que lhe cobriam o corpo. Nua, faz o mesmo comigo.

Nos deitamos. Nos abraçamos e acabamos dormindo nesse abraço. A manhã chega e nos acorda. è a primeira vez que não me sinto triste de manhã. Eu já a amo e ela me diz bom dia.

sábado, 5 de maio de 2007

"A saudade nas noites de frio..."


A velhice lhe chegara sem que pudesse ser impedida. Ela havia lhe mandado todos os sinais de aviso, mas ele não pode fazer nada. Sua consciência não aceitava os anos, a juventude lhe seria eterna se possível, mas não fora. O frescor da vida lhe escapou entre os dedos e agora com noventa anos era apenas um velho, e como a maioria, sozinho.

Tinha uma neta que insistia em lhe visitar duas vezes por mês e contava as coisas de sua vida, mas ali aonde ele estava, notícias do mundo não eram coisas agradáveis de serem ouvidas. A neta era tão doce, jovem e bonita. Era o que ele queria ser com a devida mudança de gênero.

Passava momentos alegres ao lado dessa neta que era o único dos seus que ainda lhe queria bem. E as notícias que ela trazia faziam o mundo tão fantástico, que se pudesse passaria outra vida ao lado dessa amiga que lhe aparece em tão alta idade. O perfume que a moça exalava era como ela, fresco, e lhe preparava para os dias que iriam se apresentar implacavelmente.

Ela não sentia a velhice. A inimiga do homem ainda não tinha descoberto a menina de 17 anos que visitava o avô, levando-lhe algum doce, jornais recolhidos e alguma história de sua ainda jovem, por isso mesmo mais cativante, vida.

Os olhos eram os mesmos, do mesmo negror. Sinal da família que sempre carregara lindos olhos negros. As histórias narradas pela moça eram lindas. Começara a faculdade de arquitetura e queria reconstruir o mundo e o homem, para que as coisas se respeitassem nas suas naturezas. Estava namorando um rapaz, jovem como ela, e o pintou como um Adonis moderno para o avô, deixando no coração do velho um arranhadinho de ciúmes, que se sentia feliz ao mesmo tempo, por ver a felicidade da filha de seu filho. Contava também dos sambas que ouvia ultimamente e de como gostava da alegria e tristeza simultâneas nessas músicas. Lia alguma notícia especial dos jornais que trazia consigo. Falava dos livros que lhe enfeitiçavam.

No fim das suas horas abraçava esse senhor com o afeto mais profundo que um homem pode ter pelo outro, e saia chorando. E se olhasse para trás veria que os olhos do avô também choravam. A alegria da juventude então se cansava do asilo em que ficara todo esse tempo e corria leve atrás dos cabelos encaracolados da jovem, que o vento insistia em balançar. O homem então sentia sua antiga companheira lhe chegar fria e rabugenta. E tudo voltava a ficar velho, feio, desagradável...

Ele sabia que só depois de duas semanas é que ela voltaria para vê-lo. O rapaz que lhe ajudava e era responsável pelo seu bem estar sofria dois dias com a amargura da saudade do velho. Depois o velho se rendia a doçura da mesma saudade e contava ao jovem as maravilhas que a moça trazia. O fazia de forma tão verdadeira que o moço se apaixonara. Não pela neta que visitava o velho, porque essa nunca tinha visto, sua folga era nos dias da visita. Apaixonara-se pela neta pintada em cores tão vivas.

Passaram-se alguns meses. Noventa e um ele completaria em alguns dias. Era muito tempo pra se viver, não tinha necessidade de todos esses dias. A metade já lhe satisfaria, mas os dias insistiram em vir, um após o outro, como se fossem os elos de uma corrente que o prendia cada vez mais.

A neta que antes vinha com uma freqüência ordenada começou a falhar. Talvez os trabalhos da faculdade. Talvez os amores de um novo namorado. Talvez a diversão com os novos amigos. Tudo era boas desculpas para justificar a ausência em dia que era esperada com tanta paixão. A única coisa que ele não perdoaria era que ela visitasse outro velho. Esse posto já era seu e só seu.

O rapaz que lhe cuidara não cuida mais. Mudou-se de cidade para se casar com uma moça bonita. Jamais esquecerá a paixão pela neta do seu velho. Mas essa moça de agora era de verdade e tinha uns beijos deliciosos. O velho desejou boa sorte. Um abraço. Um adeus. O moço foi embora e chorou, escondido no quarto, as saudades do avô postiço com suas histórias de uma neta fantástica. O velho também sentiu falta do amigo, mas na sua idade já sabia que tudo se vai um dia.

A neta se fazia mais demorada, só que dessa vez a esperança não acabava no homem. Feito criança esperando pelo aniversário em que teria como presente a alegre visita da menina. Essa espera lhe fazia lembrar a mãe, a casa com piso de madeira, os oito anos, o cheiro de baunilha que recendia pela casa em dia de festa. Mas tudo era vago e antigo e chorava por dentro sua insuficiência.

O dia veio. A neta não. Não tem o que comemorar. Recolhe-se em seu quarto e escreve em um papel coisas que a memória insiste em trazer dos seus antigos guardados.

No outro dia não se levanta. A neta é avisada da morte e sofre e chora e se castiga pelo esquecimento. Se lembra da musica que o velho de olhos negros sempre cantava em seus ouvidos em dia de visita:

"A saudade é dor pungente, morena. A saudade mata a gente, morena."

quarta-feira, 2 de maio de 2007

EGO


E se eu não quiser falar com Deus e fugir da luz e me enterrar na escuridão que há dentro de mim... E se nesse escuro eu caminhar noites e mais noites, aos tropeços e arranhões, na busca do que não sei. Não mais haverá dias.

As manhãs são felizes demais para que eu possa suportá-las e me escondo na noite porque ela me protege, todos são pardos, mas na noite que existe em mim não existem outros gatos.

Existem sim... Quem está aqui? De forma obscura consigo identificar. Sou eu quem está aqui. Estou em partes, dividido em diferentes pessoas, alguns outros eus meus. Por isso me perco por caminhos ininteligíveis. Não sei quem devo ser, se é que devo algo e nem qual de mim posso mostrar ao mundo. Não sei quais vontades ter.

Quero fingir para todos minhas as minhas caras numa só e me afastar do mundo, me tornar impessoal, impassível, sem gosto... E quando finalmente eu e os meus outros estivermos sozinhos, vou saber o que não queria.

Eu sou Deus e por isso mesmo dono de mim e dono do meu caminho. Se erro pouco tem importância, afinal, não vim à vida para vitórias. É na dor da derrota que se descobre nossa verdadeira função no jogo. Mas é tudo inútil. Existe uma verdade que me impede de levar meus pensamentos para um final menos doloroso: Deus não erra.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Trocado.


O quarto estava com todas suas luzes acesas. As janelas também estavam abertas e uma brisa quente balançava de leve as cortinas vermelhas. Diante do espelho de uma grande penteadeira um homem se contemplava. Havia poucos minutos que saíra do banho, ainda sentia na pele jovem e rija o molhado da água quente que caíra forte do chuveiro.
Ele sempre se dedicou com amor singular ao banho. Sentia que a água quente lavava sua alma e que essas sujeiras escorriam pelo ralo. Não sabia explicar como essas coisas de alma desciam junto com a água. Era quase meditação. De alguma forma essa sujeira voltava para sua alma, e voltava o cansaço, a tristeza, a desilusão... Nunca fora convidada para voltar a essa casa que era o corpo do homem. Mas voltava... Só que agora essa preocupação não lhe acometia, as sujeiras estavam longe e nem se via anunciar o regresso dessa que escorria. Ele estava fresco, nu diante do grande espelho da grande penteadeira no quarto onde as cortinas vermelho escuro se deixavam balançar.

A vida sempre exige do homem mascaras diversas. Ele usava algumas pensando que se defendia de algo que estava sempre a lhe apontar. Talvez se defendesse mesmo. Sua identidade se mantinha em um segredo que, às vezes, ele mesmo desconhecia. Mas ele conhecia bem a si mesmo. Seu rosto e seu corpo eram auto-analisados diariamente por varias horas. Ele era narciso. A próxima hora ia passar diante daquele espelho.

Seus olhos eram bonitos. Negros e profundos. Um olhar que desvendava mistérios nas almas alheias. Nada disso. Tinha um olhar triste, que pra se esconder dessa tristeza de seu negrume se fazia azul. Um azul irritante, meio desconfortante. Era assim que começava a se defender e sua real mascara a se manifestar.

A pele começava a ficar mais branca. Muito mais branca. A textura lembrava porcelana ou coisa parecida. Perdia toda a humanidade que tinha nela. Uma vez lhe disseram que suas bochechas poderiam se quebrar ao meio. Essas coitadas, envergonhadas com essa lembrança ficaram róseas. As pálpebras também se transformavam e um arco-íris brilhante lhe surgia ao redor dos olhos. Talvez fosse mágica. Talvez é uma palavra que nunca quer dizer nada. Mas era mágica a explicação que a vizinha nonagenária dava para o crescimento repentino dos cabelos do homem. Raspados, alongavam-se rapidamente até quase o cotovelo. Mágica.

Agora só faltava se vestir. A nudez lhe deixava desconfortável. Era nu que se sentia mais próximo de voltar a ser criança, se sentia indefeso. Todo homem ou mulher é assim. Muitas vezes perdem esse medo da nudez, e se afastam completamente de quando eram crianças. O vazio chega e toma lugar das lembranças que o corpo tinha de quando era criança. Não é esse o caso. Esse homem que vemos mantém sua nudez inocente e se veste para mantê-la assim, protegida.

A roupa é colorida, muito colorida e alegre. Uma pessoa podia ser feliz vestida daquela forma. Era o que ele sentia. Só que agora não é mais ele. Tudo muda de lugar e algumas mudanças podem mesmo assustar alguns desavisados. O homem se despede se vestindo. Agora a mulher está quase pronta.

Calça os sapatos de salto alto, bebe duas doses de vodcka, cheira algum tanto de cocaína e sai pela noite afora, protegida por essa identidade secreta. Feminina e perturbada sai pelas ruas em busca de diversões que lhe alienem desse seu mundo de transmutações diárias. Fossem outros os tempos seria tomada por um super-herói, ou heroína. Mas não hoje. Não existem mais heróis. Nem ela acreditava mais em heróis. Acreditava sim na força da maquiagem bem feita, e no que a Madonna podia fazer pelo mundo se fosse canonizada. Agora os pensamento já não são mais a mesma coisa. Na verdade eles não mais existem e o mundo gira em néon. Uma drag music qualquer tocada por um dj que não se pode definir se é daqui ou de algum outro planeta. Tudo brilha em exagero... Todos ali estão mascarados. Todos se protegendo. Não se sabe de que. É consenso que o ataque virá, não se sabe de onde.

A noite não é tão longa quanto promete ser. Ela nem sente o tempo passar. A droga e a vodcka consumidos com freqüência exagerada deixam essa sensação entorpecida. Ela não sente nada. Não está feliz, não está triste, não ama. Ela não sente nem quando a morte lhe chega. A cocaína adormece os sentidos. Enfarto causado pela overdose. Fulminante. Ela tinha 28 anos, difícil resistir num caso desses. A morte lhe chegou e ela nem soube. Porém é como se soubesse. Nunca tinha se arrumado com tanto primor. Estava realmente bonita. Era o que as amigas diziam vendo o corpo estirado no chão da boate agora em silêncio. A polícia já tinha sido avisada, estava à caminho, logo chegaria ali. Todos olhavam calados seu corpo colorido espalhado no chão. Apenas uma voz se fez ouvir, lamentando a perda daquela vida:

- "Tá Kírida"!!! Paralisou o caralho todo. Quero esses sapatos pra mim... E quero dois!

E o mundo volta a girar.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Balão?


119 Kgs foi o número que a balança digital acusou em vermelho gritante. Nessa hora Maura ouve, vindo do fundo da farmácia um risinho de escárnio. O balconista era feio, porém magro, de uma magreza insuportável, chegava a envergar. Maura desistiu de comprar o suplemento dietético com o qual pensava que fosse começar um regime para emagrecer. É emagrecer mesmo, Maura era muito gorda, e baixinha coitada. Depois da desistência o que sobrava era sair da farmácia e evitar os olhares do rapaz magricela baixando a cabeça.

Nervosa, resolveu ir caminhando para casa, queria pensar na vida. Ilusão. Poucos passos depois foi persuadida pelo sol do meio dia de que a idéia mais interessante seria não ir embora à pé. O ponto de onibus estava perto, e poucos minutos depois passava um que ia direto pro seu bairro.

O onibus chegou cuspindo gente pelas janelas. A sorte de Maura foi que mais da metade dessa gente desceu no ponto em que ela estava tentando subir. Ela se sentou logo em uma das primeiras cadeira, ali mesmo naqueles que precedem a catraca, que já não ultrapassava a algum tempo graças à forma interessante de sua cintura. Ficou ali na frente sentadinha, se é que o diminutivo lhe possa ser aplicado.

Existe uma constante na vida dos gordos e essa é o suor. Não existem tempos quando o frescor poderá estancar essas cachoeiras ambulantes. Não. Maura esta ali: sentada, suando o buço, pra não dizer bigode e esperando a hora de desembarcar em seu ponto. O cobrador do onibus olha estranho quando ela pede pra descer pela porta dianteira e comenta maldosamente com o motorista o pedido feito. Quando a porta se abre Maura paga seu passe, e ouve a gargalhada horripilante do condutor. Aquela gargalhada era coisa de cinema, de bruxa de historia infantil. Maura quase se quebra de medo ou melhor, derrete, como se fosse gelatina no sol.

Agora falta pouco pra chegar em casa, a caminhada é pequena, e a tristeza não é proporcional. Além de tudo tem a fome. Sempre tem a fome. Maura não se satisfaz. Abre a porta desesperada e corre em direção à cozinha. A geladeira é sempre um bom ombro onde se pode chorar e a lembrança de uma torta inteira de chocolate lhe deixa mais calma.

Maura come a torta inteira. Devia pesar mais ou menos 1,5Kgs, mas isso não foi problema algum. Ela é louca por chocolates. Comeria um buffet inteiro de artigos feitos de chocolate. Até sonhar com uma casa de chocolate ela já havia sonhado. Não que ela não saboreasse outras coisas, Maura não se restringia a nada, apenas o chocolate era favorito. A torta foi o calmante do dia. Maura esquecera o magricela da farmácia, o motorista maldoso, e o cobrador. Na ideia de Maura cobradores eram apenas cobradores, não existiam adjetivos que lhes pudessem ser ofertados.

A satisfação brilha nos olhos. Nesses momentos Maura até se sente feliz. O problema é que ela não pode ser feliz. Maura não vive, apenas come. Como uma pessoa que não vive pode ser feliz? Come e engorda. E junto com a gordura vem uma tristeza chata de se agüentar. É a tristeza da feiúra, a tristeza da solidão. E Maura descobriu porque engorda tanto: não é porque come, é pela solidão mesmo. Ninguém fala com ela nem se quer um bom dia. Ninguém quer ela por perto. Ou ela não se quer perto de ninguém. Não conseguimos ir tão fundo nos sentimentos de uma pessoa para descobrir a verdade.

Maura vai continuar sozinha, comendo e engordando, até chegar o dia que vai ficar tão grande quanto um balão e inflar colorida pelos ares. Depois vai estourar também como um balão. Dizem as boas línguas, simpáticas à Maura, que a cidade nesse dia vai ficar com um doce cheirinho de chocolate.

sexta-feira, 30 de março de 2007

...


Não vou mais... Não insista por favor. A máscara da felicidade hoje não me cairá bem.

Hoje quero ser arrebatado aos céus. Estou puro comigo mesmo, e imploro pelos dias de prazeres regados a mel e leite. É. É por isso que vou ficar aqui.

Cansei de enxurradas etílicas.

Quero estar junto com os puros como eu... Nos daremos bem. Os iguais se repelem, mas dentro da massa amorfa que estou caminhando não existe função em ser diferente.

Quero a liberdade desesperada de ser igual a todos.

Que venha o juízo final.

domingo, 25 de março de 2007

O abandonado.

O barulho da sirene era suficiente para despertar as maiores histerias infantis. As crianças saíram correndo pelo portão. 17:05.

Abraços fortes em pais duramente separados durante quatro horas e meia, intermináveis.
Ele estava ali no meio. Uma barulheira, histórias a serem contadas com euforia. Ele também estava ansioso como os outros, mas cadê a mãe? Não tinha pai, nunca tivera. Ele nasceu da vontade da mãe de ter o filhinho mais lindo do mundo. Essa era sua história, ou pelo menos a que ele carregava dentro de sua cabeça e coração, porque ele mesmo pequeno, sabia que os sentimentos se guardavam sempre no coração.
A mãe começava a demorar, mas nada extraordinário. 17:15.

A frente da escola já estava quase vazia, o portão fechado e um zelador engraçado que conversava sozinho enquanto varria a calçada repleta de folhas secas e de toda a sorte de plásticos que embalavam os doces e outras coisas que eram comidos no ritual da saída. Elas, as crianças não comiam maçãs. Raras vezes.
Já não esperava de pé, tinha tirado a mochila das costas e se sentado na sarjeta. Ficou olhando os passarinhos e o seu canto que começou a se confundir com “Pour Elise” vinda da esquina, propagada aos ventos por um feio caminhão de gás. 17:27.

Ele começou a se lembrar de tudo que fizera depois que se separara de sua mãe. Não podia esquecer nenhum detalhe, ela ia gostar de saber de tudo, ela sempre gostava. E hoje tinha acontecido tanta coisa: correu, pulou, comeu, as tarefas feitas em classe, as por fazer em casa, e um ralado no joelho que tinha sido limpo e desinfetado e que estava meio alaranjado. O anti-séptico usado foi que tingiu sua perda de uma cor que não lhe era natural. As lembranças todas guardadas. 17:34.

Uma professora passa de carro e lhe oferece uma carona. Ele aceita, ia encontrar a mãe pelo caminho e ainda lhe economizava alguns passos. Ela merecia, coitada, sempre tão cansada. O caminho feito com uma paciência cotidiana agora passa rápido. Um mundo conhecido, visto de outra forma. Chegou na porta de cassa. Corre pelo portão. O carro vai embora. 17:41.

No dia seguinte ele não foi à escola. A noticia saiu no jornal impresso: “Bala perdida mata mais um. Dona de casa é vitima de tiroteio.”
Ele sozinho chora. Chora muito. Muito...

Não existem mais horas.

sexta-feira, 23 de março de 2007

FRUSTRADA.




A mãe quis escolher o nome da recém nascida: Medéia. O pai, assustado pelo absurdo da escolha tentou persuadi-la de que esse não era um bom nome... Irredutível, era essa sua escolha e sua vontade. Cedeu-se ao capricho.


Alíce sempre fora uma pamonha na vida, queria que sua prole não seguisse o mesmo caminho e em devaneios visualizava todas as atitudes, personalidades, canalhices e toda a forma de sordidez de que a filha seria capaz de fazer para vinga-la de sua vida insossa...


Medéia seria má...


A menina não seguiu a sina de seu nome, imaginada por sua mãe.


Se dedicou à religião e passa muito bem obrigado. É madre superiora num convento de Carmelitas Descalças. O pai, que nem convém citar o nome, teve um sublime orgulho.


Alice não suportou o baque, ficou louca, e teve que ser internada em um sanatório. Danos irreversíveis em sua mente. Em seus ataques sai gritando pelos corredores e sua voz abala todas as estruturas da casa de loucos: "Os dois vão pagar o resgate dos meus ais..."


Que vida cretina.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Um caso bebado.




Adalberto Vasconcelos de Gouveia era um bebado. De fato um alcoolatra. Dadá, como era conhecido pelos muitos amigos que fizera durante a vida era boa gente. O sorriso sempre largo na cara e as perocupações distantes.


- Oh Almeida, me vê uma gelada aí...


-E o futebol?


-Sabe aquela gostosa da novela, saiu peladona na revista!


Sempre foram esses os seus interesses. Na verdade nem sempre...


Dadá ja tivera uma vida comum. Não que a vida dele não fosse comum, mas ja havia seguido melhor as regras. Já havia seguido as regras...


Sempre fora bom aluno. Universidade Federal. Um bom emprego. Chegara até a se noivar com a filha do Edgar da loja de auto peças: Glorinha.


Ia se casar com ela, moça bonita, virgem, até descobrir que fazia tempos a piranha dava pro Pé de Mesa, um negão encanador do prédio em que ela morava. Dadá ia perdoar, mas não aguentou a humilhação comparativa dos seus 16 cm.


Foi quando a desgraça chegou...


Começou a frequentar mais o bar do Almeida, até então quase desconhecido dele. As noitadas se estenderam... Mas tudo acontecia de forma natural, seguindo o curso.


Treze anos depois Dadá ja era grande conhecido dos bares da cidade. Va-lá que a cidade é pequena, nada de se impressionar, mas também ficou conhecido da boemia suja dessas noites, e conhecido também de algumas mulheres que não carregavam a beleza como predicado. E olha que nem todas eram pagas.


Até voltou a se apaixonar: Suely. O romance foi breve. Em uma ocasional sobriedade descobriu que ela se chamava Honório Azambuja. Desconsolo... Como o pior é infinito a visão do banho sendo tomado no dia seguinte enojou Dadá. Não, ele não era um homem preconceituoso, só não curtia.


Prometeu nunca mais beber.


O jejum durou 11 horas e 32 minutos, depois nunca mais parou. Mentira...


Hoje ele não bebe, está internado na Santa Casa de Misericórdia leito 17. Cirrose hepática. espera convulsionando sua abstinência.


Dadá bebeu a vida toda, e mijou ela toda depois.. A vida é diurética.


Depois de amanha vai morrer sozinho. Não deixa nem família nem saudades.

Ócio


A falta de ocupação leva o ser-humano a atitudes desesperadas. A minha é essa... Talvez levado pela falta de identidade ou individualidade do contemporâneo ou simplesmente pra escrever bobagens e mostrar pros amigos perguntando se tá bom ou não...
Quem sabe um dia não seja um escritor, tenho que começar a treinar meus dotes pseudo-intelectuais, afinal, Paulo Coelho, meu grande mestre, não começou sua glória literária do dia pra noite... Na verdade começou, mas isso é irrelevante... Eu chego lá ou resolvo viver gritando o resto da vida: "Nunca mais passarei fome...", mesmo passando fome.
Eu não tenho vocação pra Scarlet.
Péssimo...
Aqui faz frio.
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